Março, 2021 - Edição 265
Santo pecado
A igreja imponente no alto da colina do castelo, que abrigava o convento de
Berlim, iluminada pelos relâmpagos, proporcionando lascas e aços espelhados no
horizonte sem fim.
Tarde fria e chuvosa. Densas nuvens cinzentas acumulam-se no horizonte,
ameaçando pancadas de chuva.
O vento suave como a brisa, entoando nas ramagens das árvores e nas frinchas
das venezianas do convento a melancólica canção da tristeza e da saudade.
O chão avermelhado que o circundava encontrava-se sempre recoberto por
espessa camada de capim nativo que, com suas compridas folhas, atapetava de um
imaculado verde-escuro a gleba toda. À esquerda, o monte que dominava com seus
poderosos contornos e cenário rústico daquela região, enquanto mais próximo, à
direita, o campanário da velha igreja, emergindo dentre os tufos da vegetação, estabelecia o flagrante contraste do amarelo desbotado de sua antiga alvenaria com a
intensa tonalidade verde das árvores circundantes. Ao Sul, bem acima do convento,
a campina se alastrava, quebrando-lhe a monótona uniformidade de montículos de
grama, criados ao longe pela mancha escura de um cerrado que se estendia a perder
de vista.
Amanhece...
Aí pelas onze, bateu à porta do convento de Berlim um rapaz que há tempos
andava à cata de emprego. Como não era hábito abrir-se a porta a qualquer, Frei
Bonifácio olhou pelo buraquinho.
Disse que queria falar ao Diretor (sabia lá o nome do cargo?) e foi levado à presença do dito cujo, com visível satisfação. Aquele, de comovida aparência, deixou-se
beijar os cordões e declarou que realmente lá precisavam de alguém. Na cozinha, pelo
menos Napoleão, o cozinheiro chefe, queixava-se há bocado do excesso de trabalho.
Indagado, como era praxe, sobre a sua origem, etc... e tal, soube-se que era
de parcos recursos, filho de mãe solteira, que embora com ela não vivesse, andava
saudoso e muito. Como soubera do emprego questionaram, mas a inocência das respostas nada tirou nem acrescentou.
Dia seguinte lá estavam de emprego novo. Feliz, Evandro, nome sonoro, a cara
não era de todo má. E ademais os ares santos do lugar poderiam tomá-lo melhor.
Tiritando de frio (era inverno grosso), espaventou-se Mosteiro adentro, deixando a
vida a correr atrás de si, lá fora, assim que o frade o mandara entrar. Frequentemente
dado a introspecções, não sabia bem por que sua alma sentia-a dilacerada de uns
tempos para cá. Trocava-se as bolas, mal silabava o Pai-Nosso à noitinha, arrumava
pretextos, dissimulava (será isso ódio? Amor?). Não sabe nem quer saber. Quase nem
percebe o blém-blém do sino que o desperta. Ouve uma voz suave, tem ciúmes da
paz. Era tudo o que esperava. Podia ter ido para outro lugar, mas aquele, não se sabe
bem por que, fora o mais indicado.
Uma voz chama-o com êxtase, sobe ao patamar, confiando o frade um sorriso
empalidecido e ensaia algumas palavras. O que consegue é um bom dia sufocado.
Atravessam os claustros, o céu baixo e cinzento, procura abrigar-se na blusa
desgastada que a mãe lhe tecera. Torce-se dentro dela, como os caracóis quando
amolados. Alguém desce as escadas do primeiro andar. Sente um frio no cangote, mas
o clima cheira a santidade e isto o fortifica. Ademais, a limpeza, o raffiné, o todo no
lugar, a resina dos pinheiros excita-o mais e mais. Tenta outras excitações, mas não
resiste à curiosidade de, por instantes, esticar as pestanas até uma janelinha indiscreta que rasga em seu esperar uma parede amarelecida.
Frei Bonifácio acomodou-se como quis na ampla e confortável poltrona.
Esticou as longas e magras pernas sobre a cadeira que lhe estava em frente, num
autêntico espreguiçamento que lhe fez estalar as juntas entorpecidas pela postura
anterior. Mexe com botões e os enche de perguntas, tirando-os e recolocando-os
nas casas, e continua a seguir o Frei Bonifácio, que, bochechudo, mais parece uma
moranga madura. Bate uma saudade da horta da mãe!
Na sua dispersão, perdera até o frio, aquecera-se mais, com satisfação observa
que chegaram. Entram na cozinha e então, rompendo-lhes as inibições e numa simplicidade familiar, sorri ao cozinheiro chefe.
Ele, os olhos estatelados, corresponde – “Anda, ajudar! A gente precisa se
entender. Tem muita coisa pra você já ir fazendo”, disse-lhe Napoleão.
Há qualquer coisa nele de forte que satisfaz Evandro. Fica ali como se protegido, de repente, e cinco minutos depois já descasca os inhames para a sopa.
– Que é que trouxe aqui?
– A vontade de trabalhar. Talvez o fascínio de um lugar como este. Não sei por
que, mas conventos e padres sempre me atraíram. Invejo os frades, sua cara de alienados, sempre de bem com a vida, podem exigir se quiserem o que quiseram, em nome
de uma absolvição. Podem beber e comer como abades” (rindo-se), e não precisam
invejar nada o que está lá fora, não acha?
– Não é bem assim, creio eu, às vezes, levantam com cabelo repartido do lado
errado e de ovo virado – Riram-se os dois e continuaram os afazeres.
Um cabelo cai sobre a testa de Evandro, sem consciência, ele sente algo na pele
e percebe entrar em seu campo visual, acionando seu cotovelo, pulso e mão, com
todo o seu aparato muscular refinado, em um leve toque de seu dedo em sua testa,
afastando o cabelo.
Suas sobrancelhas arqueadas demonstram e manifestam sua insatisfação e seu
nervosismo com alguma situação ou com alguém no convento.
Lavada a louça, Evandro perguntou a que horas costumavam jantar os frades.
Que às seis, e que hoje, além da sopa, comeriam filé de pescada e medalhão. O rapaz
franziu o nariz.
O certo é que a fradaria, aos poucos, já exauria as potencialidades do novo
habitante, que afinal tinha vinte e um anos e já trouxera um pouco mais de agitação
para o lugar.
Ele, por sua vez, não ousava ser inconveniente. Introduzia-se na intimidade
do Mosteiro, ora a ensaiar alguma observação mais ousada, ora a arriscar uma gargalhada.
Logo de manhã levava um cafezinho com licor ao Frei Bernardo, o manda
chuva, como o chamava; afinal não se trata de convento mendicante! Sobrava lá o
que faltava cá fora!
Percebia que era bem recebido, mas importante não deixar a prudência. Afinal
certos atrevimentos se expressos de forma correta, pensava ele, passam a ser lisonja.
Por isso, sempre que possível, engolia a língua para não vomitar mais asneiras. Talvez
o excesso de zelo o reprimisse um pouco, mas antes assim.
Já há vinte dias que lá se encontrava e, pela primeira vez, fora advertido pelo Frei
Teodósio, por ter deixado cair o galheteiro. Como às vezes é necessário que se retraiam
emoções faciais, contraiu-se também por dentro e calou-se. Calou-se com cara apoplética, o que provocou risos de outros padres. Percebeu que estava perdoado. Não resistiu
também e viu que já se contaminava com aquela frase que diz “padre ri à toa”.
Não que o galheteiro engrossasse as dificuldades do Mosteiro, mas, assim que
pudesse, compraria um outro para substituir o quebrado. Além do mais, pensava
Evandro, talvez há muito tempo os habitantes da santidade não tiveram sentido alguma diferença entre o quebrar ou não os galheteiros, uma vez que isso não implicasse
ter a barriga agarrada às costas por pança vazia!
Levantaram-se após as orações e, breve aviso de procissão da penitência. Foi
nessa procissão que Evandro teve que, indesejavelmente, castigar-se com um jejum
obrigatório. O que até agora era cor-de-rosa passou a ser bege. “Afinal, nem sempre o
semáforo tem a cor que a gente quer!”, pensou.
Achava demais ter de beber óleo de rícino. De madrugada, aproveitou-se do
trabalho que seus intestinos lhe deram para arriscar uma visita até a adega. “Imunda!
Não via limpeza, sabe-se lá desde quando.” Entrou ingênuo e saiu aguçado. O vinho
fazia um efeito celestial! Dormiu como um anjo e sonhou com prazeres da carne. –
“Aí que saudade da Rafaela.” Mas seus humores faziam cócegas na hora da procissão.
Não entendia nada daquele aparato todo, o que lhe provocava pensamentos estupidamente hereges. Não que fosse rebelde. Mas se dessem por isso, seria certamente
castigado por Deus e pelos homens. Deduzia que fosse um dos grandes penitentes,
pois fora colocado na cabeça da procissão; mas sentiu-se importante, porque ali ia
o regimento principal e todos almejavam a mesma coisa: a salvação das almas. Ele,
mais que ninguém! Que fedor! É mal daqueles que têm a alma perfumada demais.”
Viu-se interrompido nas conjeturas, quando uma voz apocalíptica mandou que
rezasse o “mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa”. Todos se ajoelharam. Evandro
abalou-se. A mãe ensinara-lhe a rezar a tal oração quando ia pra cama. Dizia que, se a
gente morresse dormindo, já morria perdoado. Achou que tinha chegado a sua hora.
Quase chorou de susto. Não compreendia bem a liturgia, lembrava-se pouco.
Só percebeu que luzia na mão de um dos frades algo redondo e lindo. Era a
custódia. Olhou para aquilo e sentiu-se levitar. Quase entrou em alfa como um bocó
e quase delirou. Acordou com uma das mãos cabeluda sacudindo-lhe a cabeça – o
“show” terminara, finalmente. Pediu rápido licença para se retirar.
A fraqueza atravessava-lhe os ossos, pelo jejum, e tinha vontade de dormir.
O corpo exangue e flácido escorregava das bases. Sombras e manchas azuis, verdes,
amarelas, quase extintas. Amava aquele lugar.
As pálpebras pesadas imploravam por descanso e o céu de chumbo lá fora apagava-se mais uma vez. Olhou para o Cristo na parede e só viu a metade.
Acordou com um torpor inexplicável. Um latinório ouviu-se ao longe. Ruído de
paramentos, pigarros do frade mais velho:
– Esse já está com um pé na cova e outro na casca de banana”.
Uma lufada de vento o entristeceu voluptuosamente. A própria carne estaca e
friorenta. Lembrou-se do pacto. Não podia esquecer-se da mãe. Veio-lhe o impulso
de fugir. – Ah! Bons dias de sol, em que jogava bola no adro da igreja. Armar redes,
sentar-se à sombra dos arvoredos!
Estremeceu. Levantou-se. O ar estagnado cheirava-lhe mal. Tudo caía em cima
dele. A voz da mãe desabava. E nem as genuflexões, nem os sinais-da-cruz, as atitudes
compenetradas dos padres na capela, o impediram de dirigir-se àquele quarto, onde
alguém quase jazia.
– Mea culpa, mea máxima culpa... – Tinha medo, mas não podia fugir. Chegou,
parou, entrou.
– Frei Apolinário! – O coração fechara-lhe a razão. Descompreendeu a bondade
e a generosidade.
O Frei curvara-se e parecia murmurar algo.
Num gesto desmedido falou: “Quem é você e o que quer? Como entrou aqui?”
– A farsa acabou. Se Deus pra você sempre significou luz, pra mim a pra minha
mãe sempre significou treva. Sou filho de seu estupro e sangue de sua indiferença.
O sol irrompeu pela porta afora, uma melodia suave no ar. O nevoeiro dissipara-se e Evandro, o pequeno vingador, desapareceu na escola da vida, deixando para
trás o rastro da morte.