Março, 2021 - Edição 265

Reflexões sobre a arte da escrita

Educação não é um privilégio:
a grandiosa obra de Anísio Teixeira

No Brasil, os primeiros anos do Século XX foram marcados, dentre outros aspectos, por ondas de renovação da República. Dá-se o desenvolvimento da industrialização e, com isto, o avanço da urbanização. Com essas transformações, a escola, em princípio, deveria se adaptar a uma nova realidade: a de receber em seus bancos pessoas de camadas sociais cujas famílias, muitas vezes, não tinham uma tradição escolar. Se, por um lado, essa perspectiva é promissora para a educação do país, por outro, criou-se um cenário no qual, muitas vezes, os estudantes não conseguiam se ajustar à escola por ser esta, ainda, herdeira de uma tradição aristocrática de se construir conhecimento sobre o mundo em que se hierarquizavam pessoas e conhecimentos.

Nesse cenário, alguns educadores brasileiros pensaram a realidade e as questões da educação e tentaram formular propostas para os seus problemas. Dentre eles, eu gostaria de destacar hoje o nome de Anísio Teixeira (1900-1971), que se caracterizou por unir rigor intelectual com uma série de ações coordenadas e bem fundamentadas ao longo de sua existência em prol da educação brasileira. Ele foi um dos principais articuladores do chamado movimento da Escola Nova no Brasil que, entre outros elementos, defendia o ensino público, laico, gratuito e obrigatório. A sua atuação nos vários setores da educação, seja como teórico, escritor, professor, diretor da instrução pública, reitor da UNB ou alocado em outros cargos ligados à educação, foi sempre marcada pelo trabalho comprometido e com a visão de que a educação é um direito de todos. Anísio Spínola Teixeira nasceu no dia 12 de julho de 1900 na cidade de Caetité, na Bahia, e faleceu no Rio de Janeiro, muito provavelmente no dia 11 de março de 1971. Ele se destacou desde o início de seus estudos em instituições jesuíticas, primeiramente em sua cidade natal, Caetité – BA, no colégio São Luiz Gonzaga e, depois, no colégio Antônio Vieira em Salvador. Dois anos depois de se formar em Direito, em 1922, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro (atualmente Faculdade de Direito da UFRJ), ele foi designado como Inspetor de Ensino Geral da Bahia. Com esta função, viajou à Europa para conhecer o sistema de ensino de alguns países, e, depois, em 1927, aos EUA, a fim de estudar com o educador e filósofo John Dewey, cujas ideias iriam influenciar toda a trajetória de Anísio Teixeira. Em 1929, ele obteve, pelo Teachers College da Columbia University, o título de Master of Arts.

A viagem de Anísio Teixeira aos EUA marcou profundamente a sua formação intelectual e a sua opção por trabalhar com a educação. Ele ficou bastante impressionado com práticas pedagógicas que, já naquela época, eram utilizadas nas escolas norte- -americanas de forma a valorizar as potencialidades de cada indivíduo. Essa experiência o levou a escrever um interessante diário de viagem e um importante trabalho sobre a educação de seu tempo, o livro Aspectos americanos de educação, em que faz um detalhado relato a respeito da educação em escolas americanas de cidades como Maryland, Richmond e Cleveland.

De volta ao Brasil, em 1928, Anísio Teixeira inicia um percurso de educador e gestor educacional. Inicialmente, ele ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Nesse período, ele foi um dos signatários do importante Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Nos anos seguintes, ele iria fundar o Instituto de Educação, em 1932, e a Universidade do Rio de Janeiro, em 1935, onde se encontrava a Faculdade Nacional de Filosofia, de onde se originou a atual Faculdade de Educação da UFRJ, na qual Anísio Teixeira também atuou. Na segunda metade da década de 1930, em meio a uma série de repressões do governo de Getúlio Vargas, Anísio Teixeira foi perseguido e afastado da vida pública brasileira devido às suas ideias democráticas. Na década de 1940, ele foi conselheiro da UNESCO (em Nova Iorque) para Educação, Ciência e Cultura. Na década de1950, de volta ao Brasil, foi diretor do INEP e fundador e primeiro diretor da CAPES. Foi idealizador e, entre 1963 e 1964, reitor da Universidade de Brasília. Com a implantação do regime militar de 1964, Anísio Teixeira, novamente, é afastado da vida pública, vindo a falecer em circunstâncias até hoje não totalmente esclarecidas em 1971.

Se eu pudesse resumir o pensamento de Anísio Teixeira em poucas linhas (o que, certamente, não me é possível dada a profundidade de seu trabalho), diria que toda a sua teoria e prática educacional tem como ideia central que a educação não é, nem pode ser, um privilégio de poucos, mas um bem fundamental de todos os membros das sociedades democráticas. Toda a sua luta em prol da educação universal parte da percepção de que a educação, até então desenvolvida no Brasil, era predominantemente voltada para as elites e ainda muito presa a conceitos morais e religiosos. Ao contrário disso, ele pensava em uma educação que fosse reflexiva, humanista e que formasse sem barreirasde classe. Outro elemento importante em sua trajetória é a percepção de que a educação é um dever do Estado, daí ele ter trabalhado tanto para que o Estado construísse escolas, universidades e organismos de desenvolvimento e de fomento à pesquisa. Partindo desse princípio, Anísio Teixeira advogava por uma escola pública que tivesse como princípio a preparação de todos para a vida em um estado democrático.

Outra de suas importantes percepções é a de que a educação envolve teoria e prática constantes. Para ele, ambas trabalham em permanente simbiose, uma vez que a teoria possibilita o desenvolvimento de uma prática consciente e ancorada em experiências educacionais bem-sucedidas. Por isso, ele considerava fundamental uma formação de professores que levasse à compreensão do ofício de ensinar como prática para a liberdade em que fosse entendido, ainda que o processo de formação do professor nunca estivesse terminado, e que o Estado assegurasse a sua formação continuada.

Outro de seus fundamentos é o de que o educador é, também, um pesquisador e, por isso, não pode ignorar a realidade de cada contexto em que atua. Essa percepção deve ser estendida a todos os que estão envolvidos com a responsabilidade de ensinar. Diretores de escolas devem conhecer bem a realidade de seus alunos a fim de implantar atividades e propostas educativas que venham ao encontro da comunidade; secretarias e ministérios de educação devem estudar profundamente as situações de cada contexto educacional a fim de propor políticas públicas adequadas a cada realidade. E, em cada contexto educacional, pesquisas de diagnóstico devem ser implementadas para o conhecimento das diferentes situações envolvendo a educação. Para Anísio Teixeira, no Brasil, a educação seria o fator preponderante para se desconstruir as desigualdades sociais. Tendo clareza de que a sociedade brasileira era profundamente hierarquizada, e na qual a educação formal era uma mercadoria de difícil acesso, ele fez da educação universal uma bandeira de luta, compreendendo que o progresso do país depende de a sociedade implementar a educação como direito fundamental.

Anísio Teixeira foi um administrador escolar de excepcional qualidade e entendia que a educação integral para alunos e professores seria ideal para formar a todos dentro dos princípios de liberdade e de cooperação para a melhor atuação das pessoas na sociedade. Por isso, ele idealizou e fundou a Escola Parque (Centro Educacional Carneiro Ribeiro) na Bahia, escola integral inspiradora dos CIEPS construídos, anos depois, no Rio de Janeiro na década de 1980. A escola integral, para ele, significava não apenas um espaço em que houvesse mais tempo para educar as pessoas, mas que as integrasse socialmente em uma constante troca de experiências. As preocupações de Anísio Teixeira, no entanto, não se limitaram ao terreno do ensino básico, ele produziu reflexões importantes a respeito do ensino médio e da educação superior, compreendendo a universidade como local de formação profissional e, também, de desenvolvimento das mentes e dos saberes humanos e o espaço privilegiado de troca de conhecimento. Além de estudar o ensino superior no âmbito teórico, ele também atuou diretamente para o estabelecimento de instituições fundamentais de pesquisa, como o INEP e a Universidade de Brasília.

Em 11 de março de 1971, Anísio Teixeira, depois de ter passado boa parte da manhã na Fundação Getúlio Vargas (FGV), na Praia do Botafogo, no Rio de Janeiro, iria visitar Aurélio Buarque de Holanda, em Botafogo, muito, provavelmente, para conversarem a respeito de sua recém-indicação para concorrer a uma vaga para a Academia Brasileira de Letras. Segundo relatos, Anísio teria saído antes das 11 horas, dirigindo-se, a pé, ao apartamento de Aurélio Buarque de Holanda. Após o encontro, ele iria para a Editora Civilização Brasileira, na Glória, onde estava trabalhando como consultor.

Geralmente, Anísio mantinha a mesma rotina de trabalho e voltava para casa entre 18h30 e 19h00. Neste dia 11, por volta das 20h, a mulher de Anísio, Emília Ferreira Teixeira, ligou para a filha, Anna Christina Teixeira Monteiro de Barros, preocupada porque Anísio ainda não havia chegado. A filha imaginou que o pai poderia ter saído com o embaixador Paulo Carneiro, um dos articuladores da candidatura de Anísio à Academia Brasileira de Letras. No entanto, com o passar do tempo, Anísio não retornou. Segundo relatos da época, o apartamento da família, à Rua Raul Pompeia, em Copacabana, começou a encher de parentes e amigos. Deu-se início a uma procura que começou na delegacia de polícia de Copacabana. Logo se descobre que ele não havia estado no apartamento de Aurélio Buarque, nem na Editora Civilização Brasileira e buscas são feitas em todos os lugares possíveis, inclusive no Hospital Miguel Couto. No dia seguinte, seu genro, o jornalista Artur da Távola, soube que o acadêmico Abgar Renault havia tomado conhecimento que Anísio Teixeira teria sido “detido para averiguações” em dependências da Aeronáutica. No dia 13, jornais noticiam o desaparecimento do educador. E, nesse dia, às 17h, a filha Anna Christina recebe um telefonema da polícia informando que o educador havia sido encontrado morto, nas palavras da polícia, “no fosso do elevador do edifício onde residia Aurélio Buarque de Holanda”.

No dia 15 de março de 1971, o jornal Última Hora trouxe uma reportagem sobre a morte de Anísio Teixeira na qual são apresentadas várias refutações à hipótese do acidente. Cada vez mais se acredita na tese de que Anísio teria sido morto sob tortura. Segundo a matéria, o acidente seria impossível nas circunstâncias descritas. A forma em que o corpo foi encontrado, demonstrava que o mesmo teria sido colocado e não caído. Anísio Teixeira foi enterrado no dia 14 de março de 1971, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. O Brasil dava adeus, de forma abrupta, a um de seus mais importantes educadores, um dos que escreveu sobre educação com profundo conhecimento e que sonhou e lutou até o fim para que o nosso país tivesse uma educação que fosse realmente democrática.

Por William Soares dos Santos - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e escritor.