Março, 2021 - Edição 265

Contas de lágrimas que choraram

As contas de lágrimas (Coix lacryma-jobi), uma planta nativa, são medicinais. A infusão de suas folhas, dizem, serve para doenças renais, pois é um chá diurético. É relaxante e antitérmico.
O plantio se faz pelas sementes lançadas em lugares irrigados. Elas são continhas durinhas, azuladas, com as quais se fazem ornamentos: brincos, colares, pulseiras, e diversos recipientes de adorno. Trituradas, elas fornecem fécula para panificação e indústria de cerveja. Pela propriedade de resistência, os indígenas utilizavam essas sementes em seus adornos e, também, por sua cor azulada, os caboclos faziam terços e rosários. Daí seu nome popular de “contas de lágrimas”, “contas-de-nossa-senhora”, “lágrima-de-nossa-senhora”, “capim-de-nossa-senhora”, “lágrima-de-santa-maria”. Na minha infância, na década de 1940, via pessoas colhendo-as, assim como ossos, ferros, latas, taboas, guachimbas para negociar na venda do Seu Jorge.
Diziam-me que os ossos eram levados para fazerem botões, os ferros para serem transformados em máquinas, as latas seriam novos objetos, as taboas desfiadas serviriam para enchimentos de travesseiros, e as guachimbas, depois de uma quarentena de molho no riacho, eram desfiadas, organizadas em feixes e vendidas para tornarem-se cordas resistentes.
Quanto às sementes coloridas, poderiam ser também trituradas em moinhos para alimentação do gado. Era uma febre de colheita principalmente entre os jovens meninos. Os tostões arrecadados serviam-lhes para irem ao cinema, comprar bolinhas de gude, cordas para os piões, doces de leite, entre outras quin quilharias necessárias para os seus entretenimentos.
E nos regatos, mananciais e brejos, arregaçavam suas calças e enchiam de contas azuis seus embornais. Entre esses jovens, chamava-me a atenção um garoto que estudava na escola de minha mãe e, às vezes, antes ou depois das aulas, em frente de casa, sentado no chão, contava-nos uma variedade de casos.
Tinha uns quinze anos ou dezesseis. Seus cabelos eram castanhos e a pele era clara. Seus olhos castanhos brilhavam à medida que eclodiam enredos que punham a sua plateia atenta. Eram risos que se ouviam ou contorções de espanto ou medo que se viam. Ele, com sua calça caqui na canela, como usavam os rapazes não adultos ainda, camisa branca, de pernas cruzadas, no chão de barro, constituía um estímulo para o barroco sevilhano Murillo pintar um quadro de um menino contando história.
Havia um ponto nesse rapazinho de que eu não gostava. Pois quando eu e minha prima, aos domingos, cortávamos guachimba e deixávamos o nosso feixe de molho no riacho, no próximo sábado, eles haviam desaparecido. Procurávamos acima e abaixo e nada. E ele nos dizia que assombrações dos escravos vinham buscar nossos feixes, pois ali eles estiveram. Isso nos deixava inquietas e voltávamos temerosas para casa, apesar de confabularmos que era ele quem apanhava a nossa colheita. Assim o medo e as perdas nos foram impedindo de procurar vender nossos produtos. Nunca os tivemos, é bem verdade.
O que me admirava nesse rapazinho é que o osso, o ferro, as latas que catava daqui e dali, a guachimba que desfiava eram produtos vendidos em sua totalidade, mas suas contas de lágrimas seguiam dois caminhos: o da venda e o da moenda de sua família, pois, trituradas, viravam o pó que, adicionado ao leite que sobrava, ia servir para alimentar os animais, Foi em uma colheita dessa que sua preciosa ganância desmaiou, quando sofreu uma crise epilética, estando sozinho. Apesar de estar em um fio de água, seu corpo cortou o caminho do córrego, empossando o espaço ocupado por sua cabeça, acabando-se para sempre a sua busca pelos pequenos tesouros e a nossa chance de ouvir histórias que arrepiavam de medo e de excitação. Já não tínhamos as contas de lágrimas, mas lágrimas que caíam sem conta.

Por Ester Abreu Vieira de Oliveira - Professora Emérita da UFES e presidente da Academia Espírito-santense de Letras.