Fevereiro, 2021 - Edição 264

Taças

O antigo móvel envidraçado da sala guarda ainda um conjunto de taças de cristal. São lindas essas copas! Algumas maiores, bojudas, outras compridas e altas. Transparentes, de areia e chumbo diluídos, soltam um som agudo ao estalar dos dedos. O desenho impresso nessa matéria delicada é o de uma flor de lótus, um lírio aquático de oito harmoniosas pétalas. Taças prontas para receber vinhos e espumantes.
Limpo cada uma delas com um pano de linho branco encharcado de álcool. Acaricio como se fosse derramar em cada recipiente algum elixir que provocasse revelações. Como se fossem cálices preparados para a comunhão na adoração e no amor.
Foi assim no dia de nosso casamento. Bebemos da mesma taça, do mesmo destino. Juramos fidelidade. Acreditamos em bênção, em união e sacrifício. Havia um plano de salvação para nós e era perfeito. Brindamos com champanhe e magia.
No futuro, que está por vir, anjos descerão à Terra com taças douradas, cada uma delas contendo a ira de Deus. A primeira despejará um líquido ácido, que fará com que se abram feridas naqueles que estiverem marcados pela culpa de seus assassinatos. A segunda transformará o mar em sangue, as criaturas marítimas mergulhadas em ondas de petróleo, os estômagos repletos de plástico. A terceira tingirá os rios e as fontes doces, onde o fogo já lambeu os biomas, destruiu os pássaros nos ninhos e os ovos de tartarugas e jacarés. A quarta atingirá o sol, que desprenderá raios de fogo vermelhos e violetas, petrificando os seres viventes de medo e pavor, enquanto ardem espalhando cinzas. A quinta atingirá o centro diabólico do governo, as cadeiras onde se assentam os mandantes de um mundo escuro e agônico. A sexta secará as trilhas do Oriente, por onde marcharão reis, profetas e califas conduzidos a um vale, a um cenário de guerra nuclear e explosiva. Da sétima taça, brotarão relâmpagos, trovões e um terremoto fracionará as cidades, as nações, as ilhas, as montanhas, em mil pedaços de granizo que cairão como chuva.
Numa superfície gelada, de vidro, anjos e homens cantarão agradecendo os atos de justiça. Esses homens, subitamente, terão corpos capazes de atravessar paredes; de viajar no espaço por sobre as bocas dos vulcões; de se alimentar de peixes prateados, ao redor de fogueiras acesas na memória.
Quem nesse momento continuará se rebelando, desprezando tão altos desígnios? Quem desejará a aflição no meio de uma natureza destruída, contaminada pelos nevoeiros de peste e infecção? Só mesmo as feras, os loucos, os de coração mais duro que as penhas. Guardo uma a uma as taças na cristaleira. Uma estranha intuição me diz que os anjos se aproximam, num ruflar de asas. Sinto uma dor fina. Meu coração tine como uma taça no peito.

Por Raquel Naveira - Da Academia Sul-matogrossense de Letras