Fevereiro, 2021 - Edição 264

Reflexões sobre a arte da escrita

A narrativa do romance Explosão de Carlos Nejar


“Não inventei Jordana, ela se inventou sozinha, com luz que não fantasiava, nem emudecia. Como a erva que nasce e persiste sendo no vento, erva. Mas Jordana tinha voz e a erva nem sabe de onde vem a voz do vento” (Nejar, 2019:40). O excerto com o qual dou início a este texto é uma das várias descrições do personagem central que encontramos na belíssima e intrigante narrativa de Explosão, romance de Carlos Nejar, publicado em 2019 pela Editora Prime de GoiâniaGO. “Descrição” é a palavra mais adequada que encontro no momento em que escrevo para tentar trazer ao leitor uma sombra do que sejam a personagem e a narrativa de Nejar, que parecem querer ser avessas a ensaios e definições fáceis. A personagem principal do romance, Jordana Duarte, embora compareça o tempo todo, não se deixa ser apreendida ou definida com facilidade e é, justamente, nessa difícil apreensão que se encontra uma das muitas belezas de sua composição e da narrativa do romance.

A obra de Carlos Nejar recupera o elemento fantástico, tão presente na literatura de escritores latino-americanos, sobretudo na segunda metade do século XX. Leitores familiarizados com essa produção compreendem que, de uma forma ou de outra, obras de cunho fantástico falam mais do tempo e das realidades em que as narrativas foram escritas do que se pode supor à primeira vista. Assim, a narrativa fantástica do conto A casa tomada, de Júlio Cortázar (1914-1984), mais do que da tensão experimentada por dois irmãos que partilham a sua existência em uma casa que é ocupada, pouco a pouco, por uma força misteriosa que os impele a abandoná-la, pode ser lida como metáfora das tensões vividas por aqueles que tinham as suas existências oprimidas pelas forças do Estado durante a ditadura militar na Argentina.

Fenômeno similar pode ser encontrado em obras classificadas como ficção científica. Ao lermos atentamente, por exemplo, obras de H. G. Wells (1866-1946), perceberemos que livros como A máquina do tempo e A guerra dos mundos falam muito mais da época em que foram escritos do que a respeito do futuro ou da fantasia que eles, aparentemente, encerram. Em A máquina do tempo, o autor coloca o personagem central em um futuro no qual se vê cercado por uma aventura entre dois diferentes tipos de seres evoluídos da espécie humana: um grupo que vive na superfície e outro que habita as profundezas do planeta, uma clara metáfora da imensa e terrível divisão de classes do mundo capitalista no auge das injustiças da Revolução Industrial inglesa. A guerra dos mundos, incrivelmente publicado em 1901, fala do planeta Terra sendo invadido por naves extraterrestres, enquanto mostra uma Inglaterra sendo impiedosamente bombardeada pelas forças alienígenas e um homem que atravessa várias cidades para tentar encontrar a sua mulher. O livro pode ser lido como uma metáfora (e mesmo uma terrível predição) das tensões políticas e sociais que já se faziam presentes na Europa e que culminariam com as Primeiras e Segundas Guerras mundiais.

Algo similar acontece na narrativa do romance de Nejar, a sua personagem principal participa do começo ao fim da narrativa, do mundo fantástico. Logo no primeiro parágrafo do romance, aprendemos que “Jordana Duarte começou a dar mel, como o da rocha, debaixo dos miúdos braços, sob o vinco das axilas e segregava na escureza de alguns favos e as abelhas a coroavam, ávidas, passando a ser rastreada também pelas borboletas, como se obedecessem à sua ordem” (p. 11). Há, aqui, uma ligação extrema da personagem com elementos da natureza. Essa ligação se torna cada vez mais íntima durante o seu desenvolvimento. À medida que a narrativa avança, os leitores percebem que a ligação da personagem com o mundo fantástico é muito profunda. Jordana Duarte trafega entre o mundo dos seres humanos, mas parece pertencer a um reino no qual predominam o onírico e a mitologia: “Jordana Duarte escutava as vozes da floresta. Cada uma tinha o seu significado. Onde termina o homem, começa a serpente ou Deus” (p. 36). Quando dorme, Jordana tem a capacidade de trazer seus sonhos à realidade. Mas advirto que a relação com o fantástico é apenas uma pequena parte do que é o romance de Carlos Nejar. Em alguns momentos, ele parece mesmo ser um desafio à filosofia, como na cena em que Jordana dialoga com o Professor Zimbório (p. 94), cuja formação parece ser limitada para apreender os tantos e inapreensíveis sentidos que Jordana deseja expressar. Há também um desejo místico nos movimentos de Jordana, daquele que se comunica com os animais, tal como São Francisco ou o que carrega uma natureza que se deseja unir a um deus que se busca incessantemente.

Não terei a arrogância de apontar uma leitura definitiva sobre o que a narrativa da vida de Jordana Duarte nos fala, nem para quais metáforas ela pode estar nos apontando. Como diz a própria narrativa, “Jordana, leitores, não tinha que descobrir o mundo, era o mundo que a descobria” (p. 41). Eu também deixarei o prazer desta descoberta para os leitores de Carlos Nejar, pois o seu romance é um daqueles presentes que só a arte literária pode nos proporcionar. Somente a sua leitura pode oferecer a cada um de nós as dimensões do que nela podemos e desejamos alcançar. Mas ao terminar o livro de Nejar, trago em mim uma íntima certeza de que a narrativa de seu romance também se refere a muitas das tensões que vivemos em nosso tempo. Ao se fundar na mitologia, elemento ao qual a narrativa recorre muitas vezes, a personagem nos parece querer afirmar as nossas origens e chamar a nossa atenção para as responsabilidades de nossas escolhas. Na página 138, quando o texto revela que “Tinha uma caixa nas mãos, com memória e mitos, como se fossem ventos entocados.

E a língua se moldava no mundo: nada existia sem palavra”, fiquei imensamente tentado a relacionar Jordana ao mito de Pandora, aquela que recebeu das divindades todos os dons, mas que, ao menos no mito de Hesíodo, deixa escapar todas as pragas do jarro de Epimetheus, talvez, apenas para nos lembrar daquele valor áureo ao qual muitas vezes precisamos nos agarrar na história da humanidade: que hoje, também, não nos esqueçamos da esperança, não daquela “esperança” que quer se fazer sinônimo de espera ou de resignação, mas daquela “esperança” que nos faz acordar todos os dias e nos dá forças para que sejamos cada vez mais senhores de nossos próprios destinos, não obstante a todas as pragas que tenhamos enfrentar.

Por William Soares dos Santos - Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e escritor