Fevereiro, 2021 - Edição 264
No Albamar, outrora
(A Fabio de Sousa Coutinho, escritor, carioca e tricolor.)
“A maior fascinação das ilhas sedutoras é serem desabitadas. Lá só moram as gaivotas,
os trinta-réis, as aves limpas do mar. E quem ali aportar respira com a liberdade aliviada de um
Robinson, prova a bem-aventurança da solidão. (…) Céu azul, brisa mansa, o mar está chamando.” (Vivaldo Coaracy, na crônica “Jurubahybas”.)
Numa de minhas inúmeras viagens à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, fui duas
ou três vezes almoçar no velho restaurante Albamar, bastante conhecido e até famoso. Mas isso
foi há muito tempo, quando eu fazia pesquisas para meus livros Uma Rua Chamada Ouvidor
(1980) e Antigos cafés do Rio de Janeiro (1989).
Situado na Praça Marechal Âncora, 184, no Centro histórico, próximo à Praça propriamente dito, é quase centenário, pois funciona desde 1933. Na verdade, é a última construção
que sobrou do antigo Mercado Municipal do Rio de Janeiro.
A torre em que está instalado o Albamar é uma das quatro que guardavam o imponente
Mercado. Com a central, mais alta, eram cinco torres. Mais de 20 mil metros quadrados davam
guarida a 16 ruas internas e centenas de lojas, sob uma estrutura de ferro importada da Europa
e demolida na década de 1950. A torre do Albamar escapou à fúria da demolição (para dar lugar
ao Viaduto da Perimetral). E só escapou graças à influência política do proprietário e fundador
do restaurante, o poderoso empresário Rodolfo Souza Dantas. É o tal negócio: quem tem padrinho não morre pagão; nem paga o pato.
Pois bem, pois muito que bem. Devo acrescentar que o salão do restaurante ganhou
uma repaginada nos últimos anos. No “meu tempo”, o restaurante era um tanto rústico, posto
que distinto. Estava atravessando uma temporada de baixa. Mas o torreão continuava firme,
como na época áurea, em que alguns fregueses da casa eram Getúlio Vargas, Carmen Miranda,
Carlos Lacerda, Mário Lago, Juscelino Kubitschek, o poeta e memorialista Augusto Frederico
Schmidt, o cronista e compositor Antônio Maria, o poeta Vinicius de Moraes, o professor e
escritor Arnaldo Niskier, o maestro soberano Tom Jobim, o romancista José Lins do Rego e o
escritor Rui Lima do Nascimento (amigos e ambos ligados à cúpula dirigente do Flamengo; Rui,
primo de Jorge Amado, mora há anos em Brasília, no Lago Norte).
Naqueles áureos tempos, o ambiente do Albamar era seu tanto sofisticado e, ao mesmo
tempo, informal, como o de alguns restaurantes e grutas de peixes e frutos do mar do Arco do
Teles, perto dali. Desde 2010, o Albamar é comandado pelo chef Luiz Incao, que, com sócios
e muita dificuldade, reergueu a casa, dando-lhe condições de maior conforto, sem perda do
antigo charme. Ele trabalhou por 18 anos na cozinha do icônico hotel Copacabana Palace. Por
certo fez ali seu “Cordon Bleu”, seu doutorado em culinária de primeira linha.
Outra figura ilustre da casa é o garçom José Sousa Nóvoa, conhecido por Pepe. Ele ali
trabalha há mais de meio século. Galego, com um resquício de sotaque espanhol, Pepe tornou-se um carioca de coração e é fervoroso torcedor do Fluminense. Ele anota os pedidos dos
fregueses com uma caneta tricolor (ele exclama, risonho: “Veja que linda!”).
O Albamar é conhecido pelos pratos à base de peixes e por um menu de receitas antigas, como a rã à provençal e o haddock ao leite de coco, bem como o Arroz Maru (arroz, brócolis, lula picada, polvo picado, cherne, camarões, mexilhões, queijo ralado, alho, cebola, tomate,
azeite). Esse Arroz Maru é uma ancestral receita japonesa de muito sucesso.
No “meu tempo” (como dizem os velhotes), quase 50 anos atrás, o Albamar era mais
simples e frugal, posto que elegante, distinto, como eu disse. Eu gostava de pedir uma mariscada, como aquelas dos restaurantes e grutas lusitanos do Arco do Teles, do Largo do Machado
ou da Rua da Conceição.
Em 1967, a Editora do Autor publicou o livro Guanabara, na sua série Brasil, Terra
& Alma. Os textos de vários autores foram selecionados por Marques Rebêlo, da Academia
Brasileira de Letras. No livro, estão o Rio, sua História e suas histórias. No Apêndice, encontramos Seis roteiros turísticos. Há indicações preciosas, mas não se menciona explicitamente o
nome de nenhum estabelecimento comercial, para evitar maledicências e disse me disse.
Assim, na pág. 206, vamos encontrar o seguinte: “Almoçar nos restaurantes portugueses
da Rua da Conceição ou nos restaurantes árabes das ruas da Alfândega e Senhor dos Passos.
Após o almoço, encaminhar-se para o Largo da Carioca e visitar a Igreja e o Convento de Santo
Antônio, a Igreja de São Francisco da Penitência e, perto, na Avenida Rio Branco, o Museu
Nacional de Belas Artes.”
E, na pág. 208, o ponto que aqui nos interessa: “Almoçar nas proximidades do Museu
da Imagem e do Som, onde há um restaurante especializado em peixes e frutos do mar e que
funciona em edificação remanescente do antigo Mercado Municipal, à beira do cais. Depois do
almoço, visitar o Museu Histórico Nacional.
Qualquer Sherlock Holmes de botequim desvenda esse “mistério da beira do cais”: o
“restaurante especializado” não é outro senão o célebre Albamar. Charada fácil, para iniciantes
e novatos…
Para encerrar esta breve viagem turístico-gastronômica, um trecho que colho na pág.
78 do livro Guia de Roteiros do Rio Antigo, de Berenice Seara (assim mesmo: Seara), de O
Globo, 2004, 2ª ed., 208 págs.: “Depois da caminhada, uma pausa para descanso no restaurante
Albamar, no centro da Praça Marechal Âncora. O Albamar é o único remanescente do antigo
Mercado da Praça Quinze, construído em 1908 em estrutura metálica fabricada na Inglaterra
e na Bélgica, com 22,5 mil metros quadrados e 24 metros de altura, que foi demolido para a
construção do Elevado da Perimetral. O restaurante, que ocupava um dos cinco torreões do
mercado desde 1933, foi o único que sobreviveu ao desmonte. De lá tem-se uma admirável
vista da Baía de Guanabara.”
De fato, uma linda, esplendorosa vista. Enquanto almoçava, eu podia contemplar a
beleza do mar, com as históricas e heroicas barcas da Cantareira indo para Niterói ou para a
Ilha de Paquetá ou de lá regressando, lentamente, como “velhas tartarugas”, no dizer brincalhão
de Vivaldo Coaracy. As barcas pertencem à C.C.V.F., ou seja, Companhia Cantareira de Viação
Fluminense. Freguês constante daquelas barcas era o cronista e historiador carioca Vivaldo
Coaracy (1882- 1967), que, desde 1945, morava em Paquetá, seu refúgio e paraíso. Lá, ele era
quase vizinho e muito amigo de Rachel de Queiroz e seu segundo marido, o médico Dr. Oyama
Macedo. O casal então morava na Ilha do Governador. Em Paquetá, morreu Vivaldo Coaracy,
que foi pai de Dagmar e Ada Maria. É ele um de meus cronistas e memorialistas preferidos e
hoje repousa no limbo da memória nacional, lamentavelmente. Está tão no ostracismo que
uma pesquisa no Google nos fornece alguns dados sobre ele, mas, em lugar de seu retrato, está
o retrato de Dostoiévski. Poderiam divulgar ao menos o magnífico retrato dele em bico de pena,
feito pelo talentoso Luís Jardim e que está no pórtico de alguns de seus livros.
Voltemos ao restaurante Albamar, que hoje mudou de nome, mantendo a alta qualidade de seu cardápio.
Agora, ele se denomina Ancoramar. Volto ao passado. Regresso ao “meu
tempo” de Rio de Janeiro. Uma brisa marinha suave e boa entrava pelas amplas janelas do
Albamar, com vista para a maravilhosa Baía de Guanabara…