Fevereiro, 2021 - Edição 264

Manga-rosa

Agarrada à minha, a mão de Judith era o que me prendia à vida, onde já não queria estar. Sonhava com o fim do meu tormento, quando voaria para bem longe, sem corpo e sem dor. Se ainda me restava um ânimo final, era para imaginar a minha carcaça vazia, os órgãos doados para quem deles pudesse fazer algum uso: as córneas, o fígado, o coração, tudo. Em pele e ossos, seguiria para o outro mundo, onde já me esperavam familiares e amigos.
Judith, porém, insistia em segurar o meu pulso, na esperança de que o sangue continuasse a circular. Era uma filha devotada, que se entregara completamente aos cuidados com o doente instalado sobre a cama fria, a cabeça pesando sobre o travesseiro macio e insensível, buscando, aflita, o melhor jeito de partir. Se os músculos mal obedeciam aos meus tíbios comandos, se as pálpebras dificilmente consentiam em deixar os olhos abertos, se os dias se faziam cada vez mais escuros, para que continuar? Por que prosseguir? Judith permanecia inflexível. Com a voz firme, emendava uma oração na outra, enquanto, no criado mudo ao meu lado, se acotovelando, santos de gesso testemunhavam, imóveis, meus esgares e gemidos. Incansável, mobilizava médicos de especialidades variadas e sacerdotes das crenças mais exóticas. Eficiente, contratava as melhores enfermeiras para minimizar meu sofrimento.
Uma moça a quem Judith chamou de Irene entrou no quarto para aparar-me as unhas e podar-me a barba. Seu vulto, em avental branco, aproximou-se do leito com delicadeza até formar a imagem de uma morena bonita, de cabelos anelados e boca bem desenhada, que consegui vislumbrar nos segundos em que tive força para observá-la. Que cheiro era aquele? Demorei a identificar. Lembrei-me das frutas que colhia do pé quando ainda era criança, na fazenda de meu avô.
A palavra insinuou-se entre meus dentes, enquanto a mulher se preparava para fazer o seu trabalho: manga-rosa. Tremi quando sua mão envolveu meu pé esquerdo, ao iniciar o procedimento para o qual fora contratada. Uma área de calor formou-se em torno da região púbica. Espantei-me. Se metade de mim já era vegetal, como poderia conservar, viril, o que sobrava? Com habilidade e delicadeza, Irene manejou a tesourinha, devolvendo aos dedos as feições humanas. Tomando-me as mãos inertes, prosseguiu o seu trabalho. Minha temperatura subiu um pouco mais. Julguei estar com febre. Balbuciei qualquer som, empapado em suor. Judith pousou a mão sobre a minha testa, na expectativa de desmentir-me. Irene estava quase terminando a primeira parte de sua tarefa. Em um minuto, viria com uma bacia de água morna, o creme de barbear e a navalha, para cortar-me os pelos da cara. Caprichosa, alisou meu rosto com método, conferindo a textura da pele e a espessura dos fios brancos que a cobriam. Foi o que bastou: no pomar, com o canivete suíço de meu pai, descasquei a manga com gosto, cravando meus dentes na polpa suculenta. O caldo amarelo escorreu-me pelo queixo, avançando até o pescoço e o peito. Estava sem camisa. Perspicaz, Judith pediu que Irene voltasse na manhã seguinte, prometendo-lhe boa remuneração. Ainda tive ouvidos para escutar sua voz em veludo, assentindo. Parti naquela mesma noite, para a fazenda de meu avô.

Por Rogério Faria Tavares - Jornalista, doutor em Literatura e presidente da Academia Mineira de Letras.