Fevereiro, 2021 - Edição 264

Literatura e diplomacia sob o signo de Machado

Machado de Assis é inesgotável. Cada geração continua a relê-lo, a redescobri-lo e a encontrar novos motivos de interesse e de investigação.
Para Lygia Fagundes Telles é uma fonte que, desde o século XIX, vem fluindo e como que se renovando no enigma estupendo que caracteriza a obra dos génios”. O Olhar Pedagógico em Machado de Assis é o título de um livro de ensaios de Arnaldo Niskier que, a propósito do maior prosador da literatura brasileira, exemplifica que toda a obra machadiana, é “sempre uma lição, mesmo quando não é, exatamente, esse o seu objetivo”. E António Olinto afirmava que Machado de Assis ensinou o Brasil a ser ele mesmo”.
Também Carlos Drummond de Andrade era da opinião que pouco importavam os grandes prêmios literários, inclusive o Nobel. “O Brasil” – insistia Drummond – “possui na sua História um escritor chamado Machado de Assis que representa condignamente não só a capacidade de criação literária como, também, o acrescentamento dos valores literários primordiais”.
As memórias de Lauro Moreira – poeta, escritor, animador cultural e diplomata de carreira – e que acabam de ser publicadas permanecem sob o signo de Machado de Assis. Os seus grandes livros, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Memorial de Aires permitiram-lhe o aprofundamento das várias dimensões da condição humana e acerca do caráter do povo brasileiro.


Repositório crítico

A conclusão é óbvia ao terminar a leitura deste livro notável: Quincasblog: meus encontros constitui um repositório do que Lauro Moreira viveu e ouviu através do mundo e, também, uma reflexão crítica acerca do presente e das apreensões em torno do futuro. Mas sem deixar de manifestar aquele sinal de esperança que nunca deixa de surgir nos momentos de maior expectativa.
Os altos cargos diplomáticos que Lauro Moreira exerceu, durante décadas, não se limitaram ao cumprimento das exigências oficiais e das rotinas burocráticas. O êxito da sua carreira profissional também resultou do poder de comunicação, da irradiação do entusiasmo e da identificação com os grandes valores culturais e cívicos. Estas marcas do modo de ser pessoal e intransmissível de Lauro Moreira destacam-se, por exemplo, quando foi nomeado pelo Itamaraty para coordenador das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil e, sobretudo, nos quatro anos que residiu em Lisboa como embaixador do Brasil junto da CPLP.
Conviveu de perto com os grandes intelectuais e artistas, enquanto desempenhava, no dia a dia, a agenda diplomática. Permanece ligado a acontecimentos decisivos. Conseguiu viabilizar algumas das realizações possíveis do projeto apresentado por Mário Soares e José Aparecido de Oliveira, na cimeira de Chefes de Estado reunida, em 1989, em São Luís do Maranhão e que ficou a denominar-se Carta Magna da Lusofonia.


As bienais da malaposta

Organizou espetáculos, conferências e colóquios que dificilmente esquecem. Ele próprio fez recitais. Ele próprio deu voz e deu alma a poetas dos oito países de língua portuguesa. Realizou encontros culturais do Minho ao Algarve, de Trás-os-Montes ao Alentejo. Deslocou-se à Madeira e aos Açores. Esteve em Cabo Verde e na Guiné. Esteve em Angola e Moçambique. Esteve, ainda, em Macau, em Timor e na Índia.
Com o título “Mãos Dadas”, os 85 poemas de 28 poetas, antologiados e declamados por Lauro Moreira, ficaram em dois CDs, editados com o apoio da UNESCO e do Instituto Camões. As Bienais de Culturas Lusófonas, no Centro Cultural da Malaposta, durante os mandatos autárquicos da responsabilidade cultural do poeta Mário Máximo na Câmara de Odivelas, constituíram acontecimentos da maior projeção nacional e internacional e elegeram Odivelas, na área metropolitana de Lisboa, como umas das cidades mais lusófonas do mundo.
Entre muitas homenagens que recebeu, Lauro Moreira foi, em 2009, distinguido como “a personalidade lusófona do ano”. Na sessão, em sua homenagem – e na qual participei como um dos oradores – no salão nobre da Academia das Ciências de Lisboa, Mário Soares classificou-o de “embaixador exemplar” e acrescentou que, no âmbito específico da CPLP e depois de José Aparecido de Oliveira, Portugal nunca tivera um embaixador como Lauro Moreira”. Missão exemplarmente cumprida – a própria CPLP também distinguiu, em 2016, Lauro Moreira com o Prêmio José Aparecido de Oliveira.
Além do Machado de Assis romancista, memorialista e contista, há um outro Machado que tem sido um paradigma de Lauro Moreira. É o Machado que, na fundação da Academia Brasileira de Letras, incluiu nas finalidades prioritárias “o desejo de consertar, no meio da federação política a unidade literária”. Esta ideia de federação da língua portuguesa, expressa nos estatutos da ABL, corresponde a um dos propósitos fundamentais da lusofonia.


Estatuto da lusofonia

A língua portuguesa não pode limitar a um veículo de comunicação dos homens entre si. Incorpora a multiplicidade de culturas e tradições de todos os países que fazem parteda CPLP. É a raiz e o suporte da lusofonia. Ao adotar-se qualquer estratégia política para a sua promoção e valorização, terá de existir um projeto de ação comum, mas com o largo entendimento das naturais e evidentes diversidades que integram um todo.
Os países de língua portuguesa que contribuíram para a eleição de António Guterres para as funções que desempenha nas Nações Unidas deverão continuar a exigir-lhe que impulsione os mecanismos institucionais necessários para que a língua portuguesa tenha a mesma equivalência concedida às línguas oficiais praticadas naquele e noutros fóruns internacionais.
Conforme se verifica nos sucessivos capítulos do Quincasblog: meus encontros, Lauro Moreira manifesta a vontade política, o imperativo cívico e a ambição cultural para que a língua portuguesa seja uma das principais línguas do mundo, difundida e respeitada em todos os continentes.
Tudo isto, enquanto Lauro Moreira singulariza as diferenças, as identidades e as complementaridades que se deparam nas obras de grandes poetas e de grandes escritores clássicos e contemporâneos que são o patrimônio vivo e o futuro da lusofonia. Mas este livro – com todos os méritos que assinalamos – é, ainda, uma reafirmação da íntima relação e do legado histórico entre a diplomacia e a literatura.

Por António Valdemar - Sócio efetivo da classe de Letras da Academia de Ciencias de Lisboa e sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras