Fevereiro, 2021 - Edição 264

O início de uma nova era - Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, com Fernanda Costa-Moura, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura.

Arnaldo Niskier: Fernanda Costa-Moura é psicanalista, professora da UFRJ e lida diariamente com os jovens. Gostaria de saber como vê essa fase em que estamos e como devemos nos preparar para o que chamamos de pós-vírus. Como é que você está vendo o desenvolvimento dessa fase no mundo todo, particularmente no Brasil? Registramos níveis também terríveis, mais de 200 mil mortos, até agora. Como você vê isso?
Fernanda Costa-Moura: Acho que essa pandemia foi uma reviravolta. Já foi dito por várias pessoas que, de alguma maneira, isso marca o início de nova era, para o planeta como um todo, para todas as nações, estamos mudando de século, propriamente dito. Quando olhamos para trás e vemos os eventos que, de fato, fizeram uma inflexão na história, percebemos que nem sempre vêm junto com o calendário. Nesse momento, estamos enfrentando as consequências de tudo que criamos, de tudo que nossa sociedade escolheu, bancou no caso do Brasil, em especial, as escolhas que fizemos, as desigualdades que criamos, as situações que sustentamos, de certa maneira, na pandemia, vieram à tona e estão cobrando seu preço.
Arnaldo Niskier: Você acha que nosso governo demorou a tomar providências para atenuar os efeitos da pandemia?
Fernanda Costa-Moura: Isso é reconhecido, de modo geral. Lidar com a pandemia não é fácil, acho que ninguém estava preparado para isso e, numa situação de emergência, de corte, de trauma, é muito importante o que sucede ao aparecimento do trauma. Uma coisa é recebermos uma pandemia como uma situação imprevista para a qual ninguém estava preparado, e outra é o que fazemos a partir daí. Num certo sentido, o que podemos fazer, a partir de um trauma, é tomar responsabilidade pelo que nos cabe, o que nos cabe de elaboração. Nesse sentido, acho que o governo, evidentemente, tem suas tarefas, suas responsabilidades e o que o governo fez ou não fez não sou eu quem vou dizer, é de domínio público. Todos nós, como cidadãos, estamos sujeitos a essas decisões e também vamos pagar pelas consequências das escolhas que fizemos. Individualmente, é preciso que, de alguma maneira, possamos tomar lugar no que se fez, a partir desse trauma e poder, de algum modo, escolher os caminhos de elaboração. O que sinto, como cidadã, só posso falar como cidadã, não sou especialista nisso, é que de alguma forma a pandemia nos exige um tipo de laço de solidariedade, de reconhecimento das fragilidades do outro, que não costumamos ter no Brasil. Temos uma história de dominação, uma dominação, muitas vezes, disfarçada, que está cobrando seu preço agora. Evidentemente, trombamos com um momento especialmente delicado da política nacional, a polarização, a luta de interesses, que nem sempre ficam explícitos.
Arnaldo Niskier: Um país deste tamanho, com esse nível de problemas, passar meses sem ter ministro da Saúde efetivo, acho que é uma coisa altamente condenável. Não deveríamos ter demorado tanto tempo para tomar as providências devidas. Você não acha que nossos jovens estão muito sentidos com isso tudo?
Fernanda Costa-Moura: Não sei a respeito das estatísticas, não saberia dizer, mas o fato é que essa situação da pandemia é muito difícil para os jovens. Eles estão enfrentando um desafio enorme, porque todas as medidas de confinamento que a pandemia exigiu atingem o jovem de maneira muito diferente de um adulto. O jovem, num certo sentido, está dando o passo, uns mais avançados, outros mais inicialmente, mas estão dando o passo justamente de encontrar o mundo. A angústia é uma das experiências humanas mais radicais. Raramente, na verdade, chegamos a esse ponto, porque angústia é alguma coisa que nos sinaliza um limite, que atinge inclusive o corpo, no sentido de que a partir da angústia temos que fazer alguma coisa. Pode ser alguma coisa desesperada, que não é uma boa saída, ou pode ser inclusive algo que nos leve a tomar mais lugar, mais responsabilidade, mais dentro da nossa própria vida, ou de alguma coisa que está a nosso cargo. O que acontece com os jovens, hoje, acho que é uma situação muito ingrata, porque, neste momento, em que estariam indo para o mundo, têm que refrear isso e refrear de maneira abrupta. Precisam ficar confinados, a maior parte, no seu mundo familiar, seja com sua família imediata, seja com aqueles que moram juntos, em lugar de sair ou conhecer pessoas ou estar na vida ou andar sozinho. São coisas que o jovem de, alguma maneira, está conquistando, entrando na faculdade. Às vezes, com nossos calouros, seguimos essa aflição, o desejo que estão de poder dar o passo, de entrar na vida universitária e sair desse mundinho mais familiar, do colégio, da escola e, de alguma maneira, dar o passo e estão tendo que refrear isso. Isso vem com um mal-estar, evidentemente, vem com preocupação, com insegurança e pode se tornar angústia. Quando a angústia incide para um jovem sem condição de ter algum tipo de elaboração, até ele se dar conta do que está acontecendo, do que precisa fazer para dar cabo daquele estado insuportável, intolerável, que é a incidência da angústia. Ele pode, simplesmente, responder à angústia com uma medida desesperada, como essas coisas todas que estamos ouvindo, nos últimos tempos, de jovens se automutilando, uma taxa grande de suicídio entre pessoas muito jovens. Na UFRJ, por exemplo, há um serviço para cuidar disso, porque é, de fato, uma incidência alta e muito preocupante.
Arnaldo Niskier: E o papel dos pais nesse processo? O que caberia fazer diante disso?
Fernanda Costa-Moura: Não só os pais, como todos os adultos responsáveis que estão em volta desses jovens. Você sabe que a entrada na universidade mudou inteiramente, com a questão do SISU, e foi um grande avanço democrático na universidade. Um sujeito que está lá, no interior do Pará, pode concorrer a uma vaga no Rio de Janeiro, sem ter que vir ao Rio de Janeiro, sem ter que estudar para vinte vestibulares diferentes. Isso fez com que houvesse essa mobilidade enorme entre os jovens. Hoje, por exemplo, na UFRJ, temos grande quantidade de alunos que são de fora do Rio, que são de fora do Estado, inclusive, que vêm de muitos lugares diferentes do Brasil e, àsvezes, em condições completamente precárias. São alunos que, de alguma forma, têm pouca estrutura, seja familiar, financeira, de moradia para enfrentar seus estudos em outro lugar. Isso faz com que, muitas vezes, essa dificuldade do jovem passa inclusive despercebida nas situações em que vivem. Diria que os adultos que estão perto desses jovens, não necessariamente o pai ou a mãe, que às vezes estão muito distantes ou já estavam muito distantes, precisam olhar para esse jovem, escutar. Esses atos podem ser vistos simplesmente na ordem de uma patologia quando, na realidade, talvez tenhamos que enxergar a discursividade desses atos e o que os atos desses jovens estão dizendo sobre nós, sobre o modo como estamos vivendo, sobre o lugar que damos a eles, sobre o lugar que damos uns aos outros.
Arnaldo Niskier:Fico quase perplexo diante da notícia de que, para o orçamento do ano que vem, o Ministério da Educação terá um corte de 4 bilhões de reais. Parece que já há destinação prevista para esse dinheiro. Não quero entrar no mérito dessa questão, mas receber do principal ministério, a nosso ver, a notícia de que o orçamento será sacrificado em 4 bilhões, como previsão, é triste. Não lhe parece que é uma coisa completamente descabida?
Fernanda Costa-Moura: Não só triste, descabida, é inadmissível e é a marca da escolha que estamos fazendo. É óbvio que um país precisa se reequilibrar. O que é espantoso na nossa história é que o reequilíbrio das finanças de um país tira sempre dos mais necessitados ou dos setores mais essenciais como educação e saúde. Então é uma coisa que viemos, reiteradamente, escolhendo e parece que escolhendo, cada vez mais, negligenciar os jovens, a educação, a ponto de vilipendiar isso. Não é só uma negligência, é um ataque o que vem acontecendo.
Arnaldo Niskier: E há um preço que nossa sociedade vai pagar muito em breve. Estamos formando uma geração com absoluta precariedade e isso, naturalmente, vai significar muita coisa em termos de futuro para nosso país. O que é tempo freudiano? Fala-se tanto nesse tempo freudiano. O que é isso exatamente?
Fernanda Costa-Moura: A expressão tempo freudiano fala de uma constatação que Freud fez que é muito bonita, muito interessante, de que o que está acontecendo agora só saberemos no futuro. O futuro vai nos dizer o que aconteceu no passado. Isso tem tudo a ver justamente com a questão das consequências que vamos enfrentar e das decisões que tomamos hoje em relação, por exemplo, à pandemia.
Arnaldo Niskier: Com a valorização da ciência, que é um pensamento seu. Temos que valorizar a ciência.
Fernanda Costa-Moura: Valorização da ciência, da cultura, de tudo que aconteceu na cultura, porque, apesar de todos os desmandos, os jovens acordaram muito nos últimos anos. Eles estão colocando em xeque uma porção de coisas desses nossos 500 anos, mesmo antes da pandemia. Estão colocando questões importantíssimas que nós, como nação, vamos ter que responder e responder com eles, inclusive ouvindo as questões que colocam, que são completamente desconcertantes, inusitadas e tem muito, muito, muito a nos fazer trabalhar. Juntos.
Arnaldo Niskier: Você tem visão otimista do nosso futuro?
Fernanda Costa-Moura: Não é que seja otimista, mas é preciso esperar que alguma coisa de mais interessante possa acontecer, que não seja o totalitarismo, uma opressão total e uma destruição do planeta. Fico pensando que, se alguma coisa interessante vier a acontecer, é por essas pequenas brechas que estão criando aí. Essas outras gerações talvez possam interrogar mais nosso modo de vida que as gerações passadas puderam fazer. Vamos ver. É um desejo.

O início de uma nova era - Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, com Fernanda Costa-Moura, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura.