Fevereiro, 2021 - Edição 264
Doutor da bocha
O jogo de bocha era uma coisa muito séria quando eu ainda
não passava de pirralho em São Paulo. E nem pensar em fazer daquilo
brincadeira de final de semana para a garotada. Somente adultos devidamente uniformizados, e apenas homens, podiam entrar nas quadras
do sagrado “Palácio da Bocha” do Ipê Clube, em São Paulo. Os demais,
mulheres ou torcedores, ficavam nas arquibancadas de três degraus, ao
lado da lanchonete.
É preciso explicar a bocha: trata-se de modalidade de lazer e
esporte de origem italiana. São oito bolas grandes de massa, quatro pretas e quatro vermelhas, e uma pequena, geralmente preta. Cada jogador fica com uma das cores – pode ser uma dupla – e um deles lança a
pequena, o “bolim”. A quadra, longa e estreita, é de saibro. Ganha quem
conseguir chegar uma, duas, três ou quatro de suas bolas maiores o
mais perto possível da pequena. Isso em linhas gerais, porque há muitas
regras na atividade.
Papai jogava bocha com seriedade. Todos os sábados e domingos,
chovesse ou fizesse sol, saíamos de casa para o clube que ainda hoje
existe nas proximidades do Parque do Ibirapuera. Ele já ia paramentado:
sapatos brancos, meias brancas, calça e camisa brancas de mangas curtas. No peito, um pequeno escudo bordado com as cores roxa e amarela:
“Ipê Clube – Bocha.” O grito de guerra da torcida era: “Sou Ipê roxo!”
Um belo sábado – ou teria sido domingo? – Fomos para lá. Eu
levava numa espécie de mochila qual guardava meu quimono para treinar judô. Chegamos ao Ipê e papai estacionou o seu amado Chevrolet
Belair, 1953, verde musgo em uma das muitas vagas da rua lateral e
quase em frente ao portão de entrada.
Descemos. Era um dia comum, de sol. Ou quase. Na portaria, uma
senhora chorava. Era funcionária e esposa de um também funcionário,
pessoa da qual meu pai gostava. Impossível lembrar os nomes depois de
tanto tempo passado.
– O que houve, dona fulana? – perguntou ele.
Ela explicou que o marido começou a sentir dores muito fortes
no abdome e tinha sido levado para um pronto-socorro municipal das
proximidades. E quanto mais falava sobre o assunto, mais chorava. Meu
pai passou nossas coisas para mamãe, disse que iria ver “o que podia
fazer” e voltou para o estacionamento. Pegou o carro e saiu em direção
ao lugar onde estava ou estaria o empregado do Ipê. Fomos fazer as
nossas coisas.
Estacionou o carro onde era possível parar e foi em direção à
entrada do pronto-socorro. Na porta, sem notar que a confusão do lado
de dentro era grande, perguntou a um porteiro onde obter informações
sobre um paciente. O homem se limitou a mostrar a ele o clichê logo na
entrada.
No interior – meu velho pai se lembrou disso por uma boa parte da
vida – a situação era caótica. Havia acontecido um acidente de trânsito
na região e duas ambulâncias vomitavam feridos, um atrás do outro,
naquela emergência. O único médico presente se esforçava para colocar
ordem na desordem, ajudado por duas ou três profissionais de enfermagem. Uma delas, a mais desesperada com a situação, viu aquele homem
todo de branco no lugar e o agarrou pelo braço:
– Doutor, o senhor caiu do céu! Venha cá.
Antes de poder falar qualquer coisa e nem ao menos obter a informação que iria pedir, o empresário de metalurgia e jogador de bocha
nas horas vagas viu-se diante de uma pessoa com fratura exposta numa
das pernas, gemendo de dor sobre uma das macas. A enfermeira perguntou:
– Do que o senhor precisa além dos instrumentos que estão aí?
– Está havendo um engano – disse ele como que numa súplica.
– Como? – Quase gritou a enfermeira como quem não quer acreditar. “O senhor é o quê?”
Ele conseguiu então tentar explicar que sua roupa era um uniforme de bocha do Ipê Clube e que ele estava ali tentando obter informações sobre uma pessoa que havia passado mal.
– Isso é uma emergência, sujeitinho! Uma emergência! E o senhor
me vem aqui fantasiado de médico. Vá embora!
Sem ação, o velho Nelson Albuquerque Silva olhou para os lados.
Todos estavam concentrados no atendimento aos feridos do acidente,
no balcão de atendimento não havia mais viva alma e o porteiro ou
segurança olhou para ele e mostrou a porta da saída com o dedo indicador de uma das mãos.
Ele saiu. E no exato momento em que um outro sócio, esse realmente médico, chegava para pedir informações sobre o mesmo assunto, conseguiu saber que o funcionário do clube havia sido medicado
de gastrite, estava repousando antes de ir embora e passava bem. Pelo
menos ele, claro.
Voltaram para o Ipê tão logo puderam. E as peripécias daquele dia
viraram motivo de piada no clube por um bom tempo, onde a toda hora
o “doutor da bocha” era cumprimentado pelos colegas de jogos, em
meio a tapinhas nas costas e rodadas de cerveja.
O velho não descansou enquanto não soube que a pessoa ferida
com fratura exposta na perna havia sobrevivido. O funcionário, claro,
também. Entre mortos e feridos restou ao “doutor” uma boa história
para contar durante um bom tempo.