Janeiro, 2021 - Edição 263

Três dedos de prosa

Nostalgia


Nostalgia é um sentimento que acomete grande parte da humanidade. A palavra está nos dicionários, todo mundo conhece, mesmo aqueles que se mantêm ilesos à conhecida patologia. Mas aonde quero chegar? Quero chegar, senhores, à história da palavra. A ensinança vem do erudito escritor argentino-canadense Alberto Manguel.

Está na pág. 129 do livro Os Livros e os Dias, do supramencionado autor de muitas obras e antigo amigo e leitor do cego poeta Jorge Luis Borges. Esse livro (cujo título nos remete a Os Trabalhos e os Dias, do poeta grego Hesíodo) foi traduzido no Brasil por José Geraldo Couto para a Companhia das Letras, SP, 2005. Eis o trecho:

“A palavra ‘nostalgia’ foi inventada em 22 de junho de 1688 por Johannes Hofer, um estudante de medicina alsaciano, mediante a combinação da palavra nostros (‘retorno’) com a palavra algos (‘dor) em sua tese de medicina, Dissertatio medica de nostalgia, para descrever a enfermidade dos soldados suíços mantidos longe de suas montanhas.” A palavra pegou e correu mundo. A nostalgia da infância é talvez a mais conhecida modalidade desse agudo sentimento. Livros de memórias estão aí, a mancheias… Muita gente tem saudade dos seus casimirianos oito anos de idade, “da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais!” Grande e sofrido poeta fluminense Casimiro de Abreu, que morreu na flor da mocidade!

Repletos de nostalgia e de sua sucedânea, a melancolia, são os livros de memórias do poeta carioca Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), As Florestas, O Galo Branco e Paisagens e Seres, todos excelentíssimos.


Nobel para uma autodidata

No livro Inverno de Biquíni (Rio, Record, 1964) do hoje esquecido Henrique Pongetti , encontramos a crônica intitulada De um caderno de viagem, que começa assim:

“Sardenha bíblica das virgens intocáveis e dos nuraghi. Sigo na auto-pullman de Cagliari a Nuoro, numa das manhãs de fogo da ilha. Em certas aldeias primitivas do caminho, vejo os personagens de Grazia Deledda nas suas roupas típicas. São tão estranhos ao barulho de um motor, tão fora do meu tempo, que penso em miragens de viajante enfeitiçado pela literatura regionalista.”

Mas adiante, na pág. 122:
“Grazia Deledda, Prêmio Nobel de Literatura, tem em Nuoro uma casa e uma rua com seu nome. A casa foi adquirida pelo seu amigo Elias Sanna, que nela vive e a transformou num museu de recordações da escritora.”

A mais interessante informação vem em seguida, o grande cronista ainda se referindo a Elias Sanna: “Insiste no fato de a Deledda haver conquistado o Prêmio Nobel sem haver passado da quarta classe primária repetida espontaneamente, várias vezes, pela falta de um curso mais adiantado e pelo prazer de continuar aluna. Mostra a página do livro onde a escritora conta humildemente a breve história dos seus poucos estudos. Repisa a palavra autodidata como se o dinheiro do Prêmio Nobel devesse ser duplicado pelo fato de o premiado o haver obtido sem um título de doutor.”

E Henrique Pongetti, exímio narrador, conclui sua página sobre a ilha da Sardenha e a laureada escritora italiana, hoje esquecida:

“Nas portas das casas e de um beco vejo, cochilando, alguns velhos com seus bonés semelhantes aos das figuras de bronze pré-históricas descobertas nas ruínas nurágicas; com seus saiotes de inspiração

grega; com sua solidão de fantasmas. O ronco dos motores não chega aos seus ouvidos. São os personagens de Grazia Deledda: desaparecerão com o último exemplar de seus livros; fazem o sacrifício de sobreviver por causa de seus livros.”

O Google nos informa que Grazia Deledda nasceu em Nuoro, na Sardenha, em 1871, e morreu em Roma, em 1936. O Prêmio Nobel de Literatura lhe caiu nas mãos (e na bolsa) em 1926. Seus livros descrevem os costumes sardos.

Alguns títulos de seus livros: La via del male, Annalena Bilsini, Colombi e Sparvieri, Marianna Sirca, L’ edera, Canne al vento. O livro que definiu o Nobel para ela foi justamente esse Canne al vento, traduzido em português por Caniços ao vento.

Grazia Maria Cosima Damiana Deledda passou a infância e toda a vida entre os livros, mas teve apenas formação primária. Não cursou ginásio (liceu) ou universidade. Casou-se com Palmiro Madesani e o casal teve um filho e uma filha.

Autodidatas, como a premiada escritora italiana, foram não poucos escritores de grande talento. Entre nós, o carioca Machado de Assis e o mineiro Eduardo Frieiro (1889-1982), com quem convivi em Belo Horizonte, na década de 1960, e que é personagem do recente livro de Pedro Rogério Couto Moreira, Sob o Céu de Belo Horizonte – diário de um leitor voyeur. Eduardo Frieiro, que mal fez o curso primário, foi professor catedrático de Literatura Espanhola e Hispano-Americana na UFMG e autor de vários livros, dentre eles Feijão, Angu e Couve; Os Livros, Nossos Amigos; O Elmo de Mambrino; O Cabo das Tormentas e O Diabo na Livraria do Cônego. Leitor infatigável, tornou-se um erudito, um scholar. O memorialista Pedro Rogério Moreira registra que Frieiro começou ainda jovem a trabalhar na Imprensa Oficial do Estado como tipógrafo e “foi revisor, redator e secretário de diretoria”.

Escolhi Eduardo Frieiro, em 1987, para meu patrono na Academia de Letras do Brasil, hoje presidida pelo escritor e professor Flávio R. Kothe, da UnB.


O esquecido Henrique Pongetti

Jornalista, colaborador de jornais e revistas, romancista, dramaturgo e, principalmente, cronista – um dos melhores do Brasil – , Henrique Pongetti nasceu em Juiz de Fora, MG, em 1898, passou a infância e a adolescência em Petrópolis, morou e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1979. Com humor, ele reclamava que, em Juiz de Fora, era considerado petropolitano e, em Petrópolis, era tido como mineiro. Acabou adotando o Rio de Janeiro como a sua amada cidade. Destaco apenas seus livros de crônicas: Inverno em Biquíni, O Carregador de Lembranças, Encontro no Aeroporto e Alta Infidelidade.

Nosso cronista conheceu profundamente a vida boêmia do Rio de Janeiro, as chamadas altas rodas, os “reis da noite” Carlos Machado e o Barão Von Stuckart (seus amigos), o refinado Top Club e o requintado Sacha’s, onde se pavoneava o chamado “café-soçaite”, cujas ridicularias ele ironizou com muita elegância e sarcasmo. Era um gentleman e um globe-trotter. Era um homem elegante, um chamado “boa pinta”; parecia um astro do cinema italiano.

Para concluir este terceiro dedo de prosa, deixo registrado que Henrique Pongetti participa da antologia de crônicas Vozes da Cidade, publicada no Rio pela Record em 1965. Ali ele está ao lado de cronistas da grandeza de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Genolino Amado, Maluh de Ouro Preto, Manuel Bandeira e Rachel de Queiroz. Essas crônicas antológicas foram lidas com muito sucesso na Rádio Roquette Pinto.

Na segunda “orelha” desse volume de 211 páginas, lemos este breve perfil: “Henrique Pongetti, cronista famoso e de estilo cintilante, às vezes acerado, às vezes sentimental, que se diverte de tempos em tempos em ser teatrólogo.”

Seus livros merecem urgente reedição, especialmente os de crônicas, muitas das quais certamente estão no Portal da Crônica Brasileira, criado pelo mestre da crônica e biógrafo de escritores Humberto Werneck

Por Danilo Gomes - jornalista e membro da Academia Mineira de Letras.