Janeiro, 2021 - Edição 263

Sobre o que ficou

Sou um decorador inquieto. Pronto. Encontrei um elogio frente a tantas ausências que moram em mim. Inquieto é palavra boa. A ruim é insatisfeito. Decoro a casa dos outros e a minha própria. Ou as minhas. Mudo com frequência, porque os lugares não me cabem. O vazio é grande demais para que eu me aceite e respire o bom da vida. Minha mãe desistiu de viver. E eu estava em casa. Isso foi há algum tempo. Foi ontem. É hoje em mim.

Decoro lugares e não almas. Sou pouco prendado para falar de suicídios. Mas sei falar de espaços preenchidos ou vazios. Nas casas, há uma proporção para tudo, uso medidas que compõem cenários. Em mim, as medidas são outras. O que sei é que meu pai não se satisfazia, apenas, com minha mãe. Vivia da busca. Da necessidade da conquista. Da carência despedaçada em outras bocas. Da boca de minha mãe, o que saía era o silêncio. E ela sofria. Não sei se foi isso. Escolher culpados é um desajeito dos apressados. O que se vê na superfície é nada diante da profundeza do que se esconde.

E ela se foi. E eu fiquei rabiscando uma planta em mim, um desenho

De rasuras em rasuras, cheguei a nada. Se meu pai tinha outros intentos, por que ela não o deixou pra ficar comigo? Ou não era isso, ou era eu que não bastava? Dizem que nada se compara ao amor de mãe. Então, o erro estava em mim. Pouco profundo para preencher. Pouco necessário para satisfazer.

Meu pai prosseguiu a vida nas buscas insanas dos que não se completam. Vejo-o sem o ver. E, cada vez, menos. Há sempre uma desculpa para ambos. E, assim, vamos remarcando. As marcas estão em mim. Sobre ele, não sei. Ele tem, ainda, o colo de mãe. Minha avó pouco fala sobre o ontem. Finge esquecimentos, quando tento resgatar. E se põe a me oferecer doces que não me adoçam. A perguntar perguntas desatentas para matar os instantes. E logo me levanto. E parto sem luz.

Olho os espaços vazios que vou decorar e, em pouco tempo, minha mente resolve. E confesso que dei certo arrumando o onde outros moram. Em mim, moravam perguntas; hoje, mora silêncio.

Ela poderia ter deixado uma carta, uns rabiscos de amor para mim, uma orientação para a orfandade. Deixou nada. Fiquei exposto ao frio dos dias, sem cobertas nem aconchegos. Meu pai me entregou à sua mãe, quando eu nada sabia da vida. Era pequeno. Ainda nada sei. Mas cresci forçado pelo tempo. As poucas fotografias foram retiradas dos antigos móveis para que eu pudesse olhar outros suspiros de vida. Aquela vida se foi. Tola ideia. Eu olho é pra dentro. E, dentro de mim, mora o velho. Os velhos dias em que eu ainda brincava. Sei que não sou o único. E, talvez, nem o mais covarde. Certamente, não sou, também, o mais corajoso. Sou um entre tantos que engatinham explicações.

Ontem, li uma carta que uma tal Cecília enviou a amigos, quando o marido desistiu e a deixou com três filhas, todas de nome Maria. Me fez bem. Ela prosseguiu poetizando e encontrou na palavra a essência da vida que prossegue. A mente precisa de outros respiros para expandir. O pensamento, também, requer distrações para aliviar as quenturas e voltar ao estado normal.

Decidi levar minha avó para ver alguns projetos meus e, depois, tomar sorvete de flocos, seu preferido. Decidi falar nada sobre a dor. Melhor deixá-la quietinha. Os cômodos recebem os móveis que escolhemos. Há alguns que me pedem para levar algum guardado da casa antiga. Eu permito e escolho um canto que não atrapalhe. Deixa lá. É lembrança do que foi ontem. O resto é novo, porque é assim a natureza dos dias. Sobre o que ficou, é melhor não brigar. Nem com os outros nem com os nossos sentimentos.

Há espaços novos a serem preenchidos. Então, é bom decorar, na inquietude ou na calmaria, dependendo do clima do dia, dependendo da companhia. Então, é melhor dar as mãos para quem ficou sem julgar quem foi. Isso mesmo, vou tomar sorvete com a minha avó.

Por Gabriel Chalita - Escritor e membro da Academia Paulista de Letras.