Janeiro, 2021 - Edição 263

Entrevista - Gilda Mattoso
Lembranças de Vinicius
Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura.

Arnaldo Niskier: Estamos recebendo hoje a visita, via internet, da jornalista Gilda Mattoso, que, entre outras qualidades, foi a última esposa do poeta Vinicius de Moraes. Que lembrança está no seu espírito em relação ao convívio com Vinicius de Moraes?

Gilda Mattoso: São muitas lembranças, porque Vinicius, como pessoa, correspondia ao poeta que era uma pessoa multifacetada, muito ligado à vida, muito afetivo, muito carinhoso. Tive muita pena dele morrer tão novo, porque ele tinha muito amor à vida. Mas Vinicius levou uma vida que não é para qualquer um. Muitos excessos, fumava, bebia, desregrado...

Arnaldo Niskier: O papa Francisco, outro dia, fez uma referência, numa encíclica, ao Vinicius de Moraes, Samba da Bênção.

Gilda Mattoso:Foi um alvoroço danado, todo mundo me ligando: “Você viu o que o papa falou do Vinicius?” Sou católica praticante. Fui correr para ver o que ele falou, imaginei que fosse um daqueles poemas iniciais que ele ainda era muito místico. Ele foi criado no Colégio Santo Inácio, foi coroinha, aquela coisa toda. Não. Foi o Samba da Bênção no qual ele fala muito de negros, das religiões afro-brasileiras e fala “A bênção, Senhora/ A maior ialorixá da Bahia/ Terra de Caymmi e João Gilberto”. Isso é uma das falas do Samba da Bênção.

Arnaldo Niskier: Mas a citação do papa foi um outro trecho?

Gilda Mattoso:Foi “a vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. Mas ele citou: “Isso é do poeta brasileiro, compositor, Vinicius de Moraes no Samba da Bênção.” A viúva do Baden me ligou, essa música era parceria do Baden com Vinicius. Fiquei muito comovida. Depois pensei: “Ele é argentino e Vinicius é praticamente um ídolo nacional na Argentina.” Tem uma legião de fãs, tem um livro que chama Nuestro Vinicius, é o Vinicius do Rio da Prata, que tem depoimentos de amigos uruguaios, argentinos, enfim...

Arnaldo Niskier:Cheguei a conhecer Vinicius, não vou dizer bem, mas conhecia, porque ele ia na Manchete de vez em quando, nos idos de 1964, lembro bem. Ele chegou a colaborar na revista Fatos & Fotos, que era nossa também, eu era chefe de reportagem e ele ia lá entregar a crônica semanal. Evidente que se fez dali uma boa amizade também, a admiração natural, ele era um bom amigo, posso dizer. Ele foi cunhado do meu amigo Ronaldo Bôscoli: Lila Bôscoli, muito bonita. Você chegou a conhecê-la?

Gilda Mattoso: Conheci. Quando me casei com Vinicius, ela era casada com um sujeito muito boa praça, chamado Paulo Bertazzi, e nos frequentávamos, porque ela teve duas filhas com Vinicius. Uma das filhas faleceu, mas a outra está aí.

Arnaldo Niskier: Outro dia, vi um filme sobre Vinicius na televisão, muito bem-feito...

Gilda Mattoso: Do Miguel Faria?

Arnaldo Niskier: Exatamente. Aparecem a família e as filhas, uma vida muito rica.

Gilda Mattoso: A irmã mais velha, que era uma espécie de babá dele, cuidava de tudo, porque ele era uma desorganização com dinheiro, com pagamentos, com direito autoral, com tudo. Então, ela batia nas editoras, nas gravadoras de disco e ia atrás e distribuía as pensões, porque era filho para tudo que é lado com mulheres diferentes, ela administrava isso tudo. Quando ele morreu, ela falou: “Gilda, Vinicius não morreu, Vinicius gastou.” Ele se dava, se jogava na vida.

Arnaldo Niskier:Cheguei a conversar com ele nos intervalos do Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, em 1967, 1968. Eu era do júri e ele também. Uma pena, coisas assim não continuam. São os problemas da cultura em nosso país, mas o Vinicius deixou um nome extraordinário, temos que respeitar muito e lembrar sempre. Por que chamavam Vinicius de “poetinha”?

Gilda Mattoso: Porque ele tinha mania dos diminutivos, chamava todo mundo pelo diminutivo, meu parceirinho, Carlinhos Lyra, Badenzinho, Tomzinho.

Arnaldo Niskier:Você acompanhou a carreira do Vinicius antes mesmo de ser casada com ele? Como é que chegou ao seu espírito, ao seu coração o Chega de saudade?

Gilda Mattoso: Era fã desde a adolescência. É uma música icônica, é um marco na música brasileira, foi nela que, pela primeira vez, se escutou a batida do violão do João Gilberto. O Tom sempre dizia: “Vamos cantar aquele samba nosso, o Chega de saudade. Para o Tom, isso era um samba só que, com aquela levada de violão, virou uma coisa diferente a qual se chamou de bossa nova. É uma música marco.

Arnaldo Niskier: E Felicidade? Como é que você viu? É uma música tão inspirada.

Gilda Mattoso: Não acho, porque diz “tristeza não tem fim, felicidade sim”. É um pouco melancólica, mas acho uma música deslumbrante que faz parte da história da música brasileira.

Arnaldo Niskier: Você chegou a ver no teatro o Orfeu da Conceição?

Gilda Mattoso: Não, eu tinha quatro anos quando encenaram o Orfeu da Conceição. Fui ver o filme Meia-noite em Paris, fui com minha filha. Quando saímos do cinema, ela disse assim: “Mãe, se viesse um carro te buscar para onde e quando você queria ir?” Falei que não queria ir para lugar nenhum, mas queria ter sido adulta no Rio de Janeiro nos anos 1950. Isso aqui era um espetáculo, uma cidade maravilhosa, efervescente culturalmente, com essas pessoas todas desabrochando, Tom, Vinicius, Baden, o cinema novo, o teatro, as casas noturnas, os restaurantes e todas as embaixadas aqui. Era uma cidade cosmopolita, esse é o lugar onde queria ter ido.

Arnaldo Niskier: Vinicius chegou a deixar alguma coisa inédita que você se lembre?

Gilda Mattoso: Ele tinha um livro pronto sobre o Rio de Janeiro que se chamaria Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro onde nasceu, vive e morrerá de amor o poeta Vinicius de Moraes. O título era essa coisa enorme, depois acabaram editando postumamente e ficou Roteiro Lírico e Sentimental da Cidade do Rio de Janeiro. A Companhia das Letras editou, tem as coisas que acharam desse livro e de outros lugares também sem ser o Rio. Ele tem um artigo do Vinicius que foi publicado na revista Senhor, acho que em 1954, que se chama Por que amo Paris. Toda vez que estou para ir a Paris, releio isso, porque é uma espetacular crônica da cidade em que ele descreve a primeira chegada dele a Paris, em 1939, com a guerra estourando, ele estava estudando em Oxford. Cícero Dias, que era aquele pintor brasileiro que morava em Paris. Vinicius não tinha um centavo, foi o primeiro brasileiro a ganhar uma bolsa do Conselho Britânico. Foi para Oxford, estudou os sonetos de Shakespeare e estava em Londres. Ele descreve que dali é que começou a beber whisky. Em 1938, tinha 26 anos, disse que estava numa pensão furreca lá, em Londres, com a calefação micha e um frio desgraçado. Então começou a tomar whisky como calefação. Ele estava de folga da universidade e Cícero disse a ele: “Por que você não vem aqui conhecer Paris, ficar uns dias aqui, você só tem que pagar a passagem, aqui te patrocino.” Vinicius pegou um barco (não sei o que pegavam naquela época) e foi para Paris. Eu sou apaixonada por Paris, já era antes de me casar com Vinicius, para mim é a cidade mais linda do mundo. Ele descrevendo a chegada dele em Paris é uma coisa que você chora de tão bonito. Ele fala das cores cinzas dos prédios e aquilo tudo cinza embora fosse inverno. O impacto que aquilo causou nele ficou para sempre. Ele era apaixonadíssimo por Paris.

Arnaldo Niskier:Você chegou a estar com ele em Paris?

Gilda Mattoso: Nosso casamento começou em Paris, eu era estudante, morava lá e trabalhava em produção de shows. Já nos conhecíamos de Londres, onde morei antes, e moramos um tempo juntos antes de vir para o Brasil definitivamente. Ele morou no meu apartamento de estudante que dividia com uma amiga de infância, que estava estudando lá também, ele dormia em colchonete, adorava. Minhas amigas iam todas para lá de noite e faziam massagem no pé dele, a outra fazia cafuné, ele ficava. E o Baden morava em Paris nessa época. Toda noite o Baden e a Sílvia iam para lá de violão em punho e ficávamos naquela cantoria, foi um período muito bom.

Arnaldo Niskier: Hoje você está trabalhando como jornalista?

Gilda Mattoso: Trabalho há muitos anos (40 anos, é o tempo que tem Vinicius de morto) como assessora de imprensa. Depois que ele morreu, fui trabalhar na gravadora Ariola, da qual ele era contratado e fui ser assessora de imprensa na indústria fonográfica. Trabalhei lá dois anos, depois fui para a PolyGram, que era outra casa discográfica. Trabalhei de 1980 a 1989 na indústria fonográfica e, quando saí, em 1989, botei um escritório de relações públicas e assessoria de imprensa, milito justamente na área de cultura em geral com especialidade em música.

Arnaldo Niskier: Das músicas todas do Vinicius, qual foi aquela que repercutiu mais?

Gilda Mattoso: A segunda música mais executada no mundo é Garota de Ipanema. Ela recolhe direito autoral, só perde para Lennon e McCartney, perde só para os Beatles. O Tom gostava de brincar com isso. Dizia: “É, poeta, mas somos dois e os Beatles são quatro.”

Arnaldo Niskier: Quem é que fez a versão em inglês da Garota de Ipanema?

Gilda Mattoso:Foi o Norman Gimbel. Eles nem gostavam muito da versão em inglês. O cara queria até mudar o nome Ipanema, porque disse: “Ipanema, na América, não significa nada.” Mas eles diziam que aqui é um nome indígena e vai ficar Ipanema.

Arnaldo Niskier: E Chega de saudade? De onde nasceu essa inspiração?

Gilda Mattoso: Não sei se foi feita para o Orfeu, foi na época do Orfeu. Sei que a primeira parceria de Tom e Vinicius é Se todos fossem iguais a você, que acho também deslumbrante.

Arnaldo Niskier: É tão bonito. Agora, de onde nasceu? Talvez tenha sido por causa do Baden Powell, mas o Vinicius foi autor de alguma coisa inédita na cultura brasileira que é o afro-samba. Como é que você viu isso?

Gilda Mattoso: Isso foi um enriquecimento enorme para a música brasileira, para o próprio Vinicius, porque o Baden trouxe para ele. Tom era, como Vinicius, um rapaz de classe média da Zona Sul carioca e o Carlinhos Lyra também. O Baden era uma pessoa que vinha do subúrbio e, aliás, é do interior do Estado do Rio, de uma cidade que tem o nome engraçadíssimo de Varre-Sai. O pai dele era um fã do escotismo, por isso botou esse nome nele, Baden Powell de Aquino. O Baden tinha muita ligação com terreiros, com a música de candomblé, com os atabaques. Então, ele trouxe isso para a parceria dos dois e o Vinicius, como era uma pessoa muito aberta e muito interessado em tudo que fosse bonito, ficou encantado com aquilo, o berimbau, a música da Bahia. Eles criaram os afro-sambas, Canto de Xangô, Canto de Oxalá, Canto de Ossanha.

Arnaldo Niskier:Isso é tão universal que o papa agora acaba de se apropriar, vamos dizer assim, de maneira saudável, de um verso do Vinicius para citá-lo numa encíclica. Isso é uma coisa extraordinária.

Gilda Mattoso: Acho que isso é fato inédito, deve ser o primeiro brasileiro citado numa encíclica.

Arnaldo Niskier: Citamos vários autores que fizeram dupla com ele, mas não citamos o Toquinho. O Toquinho era paulista. Como é que se explica um paulista entrar na vida de um carioca?

Gilda Mattoso:O Vinicius era muito ligado ao Chico Buarque e ao pai do Chico, Sérgio Buarque, era amicíssimo. O Chico até diz que ele começou a se interessar por música quando era criança. O Sérgio morou em Roma (acho que dava aula na Universidade de Roma) e eles moraram em Roma, o Chico era pequeno e Vinicius aparecia de vez em quando para visitar. Ele disse: “Quando ouvíamos ‘hoje vem o Vinicius’, era um alvoroço, ninguém queria ir dormir cedo, todo mundo queria ficar para ouvir ele tocar violão e cantar.” Sérgio adorava que ele cantasse. O Toquinho era amigo do Chico lá de São Paulo, o Chico é carioca, mas cresceu em São Paulo. Vinicius ia fazer uma turnê (acho que em Punta del Este, Buenos Aires, Mar del Plata...) com Dori Caymmi no violão, mas o Dori teve um imprevisto e não pôde ir e o Chico falou: “Ah, Vinicius, chama o Toquinho, ele toca muito violão.” Aí chamou, Toquinho era um garoto. Toquinho veio, Vinicius gostou do violão dele e assim ele foi. Nessa turnê, já começaram a compor juntos, dali começou a parceria, muito bem-sucedida.

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura.