Janeiro, 2021 - Edição 263
Clarice Lispector e suas revelações epifânicas
Como é bom quando se é jovem e se encontra uma arte à qual nos dedicamos por
uma vida inteira! Aos vinte anos, já professora, estudiosa de literatura, descobri Clarice
Lispector. Comecei então uma viagem intensa por seus livros, seu fazer literário intimista, sua trajetória projetada na pele de suas personagens, sua visão do ser feminino, sua
busca de solução para o mistério da existência humana, numa complexa relação com o
mundo e com a linguagem.
O primeiro tesouro, primeiro contato com seu texto, foi Laços de Família, o livro
de contos em que várias de suas marcas estão presentes: a exacerbação do universo
interior; o fluxo da consciência através do discurso indireto livre, sob o ponto de vista
de um narrador; o subjetivismo cheio de sensações; a falta de uma trama linear, pois
o que importa não é a história a ser contada, mas a palavra que cria o acontecimento.
Os dramas são psicológicos e metafísicos. As personagens, geralmente mulheres, estão
dentro de sua rotina burguesa, quando são sacudidas por crises existenciais, choques
que desequilibram o cotidiano, a estabilidade, a falsa segurança. No reino miúdo, superficial, quase fútil, explode de repente uma bomba, um mecanismo de fortes revelações.
São verdadeiras epifanias: a existência transcorre dentro da normalidade até que o ritmo
é quebrado e a personagem fica face a face com sua essência. Daí é um passo para atingir a transcendência, o êxtase, mesmo que seja por um instante.
Um dos contos que comprova esse processo é “Amor”: a inquietação de Ana no
bonde lembrando de seus filhos “que eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta” e
de seu marido que “chegava com os jornais e sorrindo de fome”, “a raiz firme das coisas”.
Mas havia uma hora perigosa: a tarde, quando a casa ficava vazia. Ana desce no Jardim
Botânico, depois de ter observado um cego mascando goma no bonde. A cena encheu-
-a de uma estranha compaixão. Diante das árvores, das dálias e tulipas, ela percebe o
quanto o mundo era rico, exuberante. O quanto a vida era periclitante, horrível e frágil.
Pensou que havia lugares longínquos, pobres ou suntuosos, que precisavam dela e ela
precisava deles. Teve medo de sua vontade de partir em missão, de ter outro estilo de
vida, com piedade de leão. Na volta, sua casa lhe pareceu triste. Ela atravessara o amor e
seu inferno. E o fecho: “Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena
flama do dia.” A cada conto uma surpresa, uma abstração, um arfar de emoção.
Passei a pesquisar sua biografia. Clarice nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia
(Rússia), a 10 de dezembro de 1920. Seus pais judeus imigraram para o Brasil quando ela
contava dois meses de idade. No Recife, cursa o primário e o secundário. Transferindose para o Rio de Janeiro, ingressa na Faculdade de Direito. Forma-se em 1944, ano em
que publica seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, fartamente aplaudido pela
crítica. Casando-se nessa mesma época com um diplomata, Mauri Gurgel Valente,
afasta-se do país, durante longo período (entre 1945 e 1959), mas não deixa de cultivar
a Literatura, numa ascensão crescente de livro para livro. O casal teve dois filhos: Pedro
e Paulo. Faleceu no Rio de Janeiro, a 9 de dezembro de 1977, aos 57 anos, deixando os
seguintes romances: O Lustre, A Cidade Sitiada, A Maçã no Escuro, A Paixão Segundo
G.H., Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Água Viva, A Hora da Estrela; livros
de contos: Alguns Contos e o citado Laços de Família, A Legião Estrangeira, A Via Crucis
do Corpo; crônicas para o Jornal do Brasil e literatura infantil. Examino suas fotos: uma
mulher bonita, sempre elegante, os olhos oblíquos contornados de preto. Há nela um
exotismo e uma expressão enigmática.
Em 1967, um acidente transformou a personalidade da escritora: ela teve as mãos
e as pernas queimadas num incêndio, provocado pelo cigarro aceso, enquanto dormia.
Dizem que escrevia fumando, com uma rosa vermelha ao lado do caderno e da máquina de escrever. A mão direita ficou deformada e com cicatrizes, tolhendo seus gestos
e sua assinatura. Deprimida, recusava convites e homenagens, iniciando um processo
de recolhimento doméstico, só abrandado pelas visitas de amigos e pela popularidade
que crescia. Nessa mesma década, foi acusada de “alienada”, pois se recusava ao engajamento político.
Separada do marido, Clarice conhece Olga Borelli, amiga e secretária nos seus
últimos anos de vida, quando já lutava contra um câncer. Vão juntas em 1976 a um estranho Congresso de Bruxaria na Colômbia, para o qual Clarice levou um de seus contos:
O Ovo e a Galinha. Isso criou um clima e questionamentos: seria ela uma bruxa? Uma
maga? Uma escritora ligada ao ocultismo? Ou uma simples curiosa pelo lado sombrio
da busca espiritual?
Olga datilografava os originais, organizava trechos, que Clarice colocava em
envelopes, recebia as pessoas e esteve com ela no hospital até o suspiro derradeiro.
Clarice, agonizante, declarou: “Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste
fim de ano exausta.”
E não é que lá pelo ano 2000, quando eu cursava o mestrado em São Paulo, fui
parar na casa do Olga Borelli? Ela havia criado o Espaço CENA, Centro de Encontro
das Artes, que ficava na rua Ibiaté, no bairro do Itaim Bibi. No quintal, foi armado uma
espécie de tenda, auditório com cadeiras, um palco, material de som. Olga nos recebeu
numa noite fria, a mim e a outros poetas como Celso de Alencar, com um sorriso afável,
apresentando-nos aquela conquista: um lugar para a cena artística, para música, teatro,
dança, diálogos. Na oportunidade, eu disse que era do Mato Grosso do Sul e li os poemas
de meu livro Guerra entre Irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai, um dos
principais fatos históricos de minha região.
Olhando os cabelos grisalhos de Olga,
imaginei seu sofrimento acompanhando o
duro isolamento de Clarice. Em janeiro de
1977, surpreendentemente, a escritora compareceu à TV Cultura, em São Paulo, para
participar de uma entrevista. Nesse dia, concedeu depoimento ao jornalista Júlio Lerner,
que depois foi reproduzido na revista Shalom
(1992). Nessa entrevista, com voz rouca e
abafada, falou sobre seu romance A Hora da
Estrela: “Morei no Recife, me criei no Nordeste.
E depois, no Rio de Janeiro, tem uma feira dos
nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma
vez eu fui lá. Daí começou a nascer a ideia.
Depois fui a uma cartomante e imaginei... que
seria muito engraçado se um táxi me pegasse,
me atropelasse e eu morresse depois de ter
ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi
nascendo também a trama da história.”
Segundo nos explica a professora
Márcia Lígia Guidin, no seu Roteiro de Leitura
da obra, o autor-narrador da novela A Hora da
Estrela se chama Rodrigo S.M. e inicia a obra
com um apelo ao leitor: pede a ele que desculpe uma história tão simples. Justifica a
pobreza narrativa por causa das próprias dúvidas em relação à vida e à literatura. Seus
comentários sobre o estilo, sobre a personagem e sobre si mesmo percorrem toda a
obra e se revelam por entre a história de Macabéa, moça humilde e ignorante, “uma
incompetente para a vida”. Conhece Olímpico de Jesus, um metalúrgico paraibano.
Os namorados encontravam-se em bancos de praça. Macabéa estava apaixonada.
Olímpico conhece Glória, colega de escritório de Macabéa. Branca, quadris largos, cabelos pintados de louro. Olímpico rompe o namoro e passa a sair com Glória. Macabéa
volta à solidão e ao alheamento. Macabéa vai ao médico, que a avisa que ela está com
tuberculose. Glória sugere a Macabéa que procure uma cartomante, Madame Carlota,
prostituta e cafetina. Madame recebe Macabéa com carinho. Carlota vê nas cartas um
passado triste, um presente horrível e um futuro com grandes predições: um marido
rico e estrangeiro. Macabéa sai aturdida e espantada. Enlouquecida de esperança. Ao
atravessar a rua, entretanto, um automóvel Mercedes-Benz a atropela. Batera com a
cabeça na calçada e sangrava. Começava a garoar e algumas pessoas espiavam a moça
agonizante. Em seu delírio, vendo o carro de luxo, pensa que as profecias estão sendo
cumpridas. Encolhe-se como um feto. Sua agonia se mistura a certa sensualidade feminina. Morte e erotismo se encontram. Macabéa morre esmagada pelo mundo urbano
que não conquistou.
Olímpico, Glória e Carlota revelam um traço comum: são todos personagens que,
por contraste à incapacidade verbal da moça, possuem uma superioridade discursiva
que viabiliza sua integração na cultura urbana. Entre outras coisas, para sobreviver é
preciso falar, pensar, discursar, prometer. Macabéa, silenciosa ou boquiaberta, fica subjugada a todos eles.
Para as personagens antecessoras de Macabéa, a aquisição intelectual, bem
como a constituição de família, não são pontos de contato satisfatórios com o mundo. A
cultura urbana, com seus reflexos, é um fardo que afasta a mulher de uma vida primitiva
e simples e a arrasta a uma introspecção problemática e agônica. Diante da vida familiar
e social, diante de si mesma, a mulher sofre um processo de perda de identidade. Em
todos os casos, as personagens, casadas, solteiras, mães, avós, pintoras, professoras, são
figuras expostas ao fracasso e à frustração. A Hora da Estrela transformou-se num filme
fascinante de 1985, que ganhou vários prêmios, dentre eles o Urso de Prata do Festival
de Berlim, com roteiro e direção de Suzana Amaral e com a atriz Marcélia Cartaxo no
papel de Macabéa.
Depois de ler o livro e assistir ao filme, escrevi este poema, “Esperança”:
Estou grávida de futuro,/ Como alguém que vai à cartomante/ E ouve tudo que
deseja.
A esperança tomou conta de mim/ Em ondas verdes, Diante de mar tão amplo,/
Desmaio de sede.
Esperança violenta,/ Se eu fosse virgem,/ De repente teria me tornado mulher,/
Noiva que cai nos braços da morte.
Esperança de transpor a porta do céu,/ Tão estreita,/ Tão fechada/ Por gonzos de
prata.
Esperança de ser quem sou:/ Semente de mostarda/ Que virou árvore,/ Embora
tarde.
Sobre o abismo/ Essa ponte,/ Esse pilar,/ Esse poder,/ Caminho/ E espero.
Neste ano que marca o centenário de nascimento de Clarice Lispector, reflito
sobre o quanto ela representou para mim: descobri-la lá atrás, na minha juventude, alimentou o meu sonho de ser uma escritora inspirada e inspiradora. Colocou-me numa
corrente cujos elos se multiplicam por gerações de leitores fascinados por seus textos.
Referências bibliográficas
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Coleção Literatura Brasileira
Contemporânea, vol. 21. Livraria José Olympio Editora; Editora Civilização Brasileira e
Editora Três, 1974.
________________ A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.
GOTLIB, Nádia B. Clarice-uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de Leitura: A Hora da Estrela de Clarice Lispector.
São Paulo: Ática, 1996.