Janeiro, 2021 - Edição 263

Affonso Cláudio e os sucessores da ancestralidade capixaba

É através da memória que damos significado ao cotidiano e acumulamos experiências. O termo “academia” remonta à Academia de Platão – escola fundada pelo célebre filósofo grego nos jardins que um dia teriam pertencido ao herói Akademus (de onde vem o nome). Ali se buscava cultivar e perpetuar o saber.

Foi com esta ideia de debates, baseada no questionamento e na dialética socrática, que diversas instituições literárias surgiram na França, entre as décadas de 1620 a 1630. Em 1897, após a fundação da Academia Brasileira de Letras, foram sendo constituídas Academias em cada Estado da Federação brasileira. Sabemos, de antemão, que os atos inaugurais dessas instituições se consolidaram através de histórias que reúnem as coincidentes éticas e intelectuais de seus integrantes.

Em junho de 1921, surgiu a capixaba Academia Espírito-santense de Letras. Uma série de eventos estão sendo preparados, ao longo do ano, para celebrar seu centenário. Um deles será a publicação de um livro com textos sobre seus ilustres acadêmicos.

Ao ser convidada pela atual presidente, acadêmica Ester Abreu Vieira de Oliveira, para integrar essa importante antologia, busquei os ecos da ancestralidade capixaba que me habitam. Através do mergulho em minhas raízes, fui acrescentando as vozes que apropriei dos livros, dos personagens que por mim passaram, das publicações veiculadas na imprensa e de escritores conterrâneos que capturaram, em prosa e em verso, sentimentos que pareciam ser só meus. Fiel à história e à íntima convivência com a palavra escrita, reafirmo a potência de nossa literatura. Somente através de textos passados podemos entender o presente e transformar o futuro. Eis a importância fundamental das Academias de Letras.

Quando me foi oferecida a opção de escolher um acadêmico para homenagear, na parte que me cabia da publicação como autora convidada, não poderia deixar de emergir em referências particulares que enchem a nossa família de orgulho. Elegi discorrer sobre a obra do irmão da minha trisavó Rosa de Freitas Cabral: o ilustre patrono da Academia Espírito-santense de Letras e primeiro governador do nosso Estado, Affonso Cláudio de Freitas Rosa (1859- 1934). Em todos os seus textos, ouvimos a ressonância de um universo que gravitou sob a égide da ética, da justiça e do compromisso social.

Nossa memória está impregnada de impressões muito pessoais, subjetivas; mas toda nossa leitura parte de uma cultura socializada que cria valores comuns, desmistificando a crença de que o passado é apenas fóssil a ser catalogado ou sepultado. Nessa percepção, o tempo do meu ilustre antepassado se funde com um espaço dilatado, tornando a figura única de Affonso Cláudio de Freitas Rosa um ser plural, que a História e a Academia capixabas muito merecidamente imortalizaram na eternidade. O nome do município de Affonso Cláudio é uma homenagem ao primeiro governador do Espírito Santo, nomeado em 20 de novembro de 1889. Mas importa-nos ressaltar, nessas breves linhas, a magnitude do seu legado não só na política, quanto nas letras e na cultura, em geral.

Influenciado pelas ideias de Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1951-1914), Affonso Cláudio se destacou em narrativas e discursos. Fez aclamadas conferências e escreveu em jornais a respeito de questões fundamentais para a época, sobretudo em relação à causa abolicionista. Participou ativamente da fundação da Sociedade Libertadora Domingos Martins, em 1883. Depois de formado, casou-se com Maria Espíndola de Freitas Rosa e dedicou-se com fôlego ao direito dos cidadãos e às causas humanitárias.

Governou o Espírito Santo de 1889 a 1890. Em 1891, tornou-se desembargador e, logo depois, presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Foi designado procurador-geral do Estado (1916-1917). Em 1920, aposentou-se como desembargador e foi morar no Rio de Janeiro, dedicando-se ao magistério superior na Faculdade de Direito de Niterói. Na Academia Espírito-Santense de Letras, foi o primeiro ocupante da cadeira n° 1 e patrono da cadeira n° 27. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, faleceu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no dia 16 de junho de 1934.

Existe uma poética do tempo que é um mergulho único na eternidade: a fluidez da memória que se narra. Ao não se apagar através de registros, a história tem a capacidade de nortear as novas gerações. Principalmente a trajetória de figuras tão exemplares quanto a de Affonso Cláudio. Esse fino e frágil tecer foi o impulso que me moveu a traçar essas linhas a respeito do meu tio-trisavô, que registrou em seus escritos toda a grandeza de sua existência.

“Mandei fazer um barquinho, da casca do camarão, o barco saiu pequeno, só coube meu coração”: eis uma pequena trova do cancioneiro capixaba colhida entre os inúmeros estudos que fez sobre nossa cultura. Entre sua vasta obra literária, contribuições historiográficas, estudos de Direito e artigos da imprensa, destacamos uma de sua mais robusta e importante publicação: História da Literatura Espírito-santense (editada em 1912, com quase 600 páginas). Na introdução, um desafio às novas gerações: “À mocidade Espírito-santense, a quem incumbe a glória e o dever de venerar e aumentar o patrimônio literário que lhe transmitiram seus antepassados.”

Escrito há 109 anos, a consistência do texto reforça o caráter vanguardista de seu pensamento, garantindo o tônus literário que o levou ao mérito do reconhecimento imortalizado: “Servindo à causa das letras de minha Pátria e em particular do meu torrão natal, a animação com que meus conterrâneos e amigos acolheram este livro e as expressões gentis com que acariciaram a leitura que do original fizeram, confortando-me em um estado da vida em que as desilusões fanaram todos os ideais, constituem um incentivo poderoso para que as profícuas pesquisas literárias prossigam e novos achados venham avolumar o acervo do nosso tesouro intelectual, fragmentado em monumentos que atravessaram mais de dois séculos, expostos a todas as vicissitudes.

Essa tarefa pertence à mocidade; eu dou-me por satisfeito com a pequena contribuição que as páginas a seguir imperfeitamente condensam, certo de haver o assunto sido tratado por escritores de reputação feita no mundo literário em que vivemos; sem temor, porém, posso confessar que por esse motivo arrisco o meu obscuro nome, o brilho e a grandeza daqueles que o tenham de o eclipsar, servir-me-ão de consolo, ou na belíssima linguagem do maior historiador de Roma: ‘Si in tanta scriptorum turba mea fama in obscuro sit, nobilitate ac magnitudineeorum, neoquinominiofficient, me consoler’ (Tito Livio).”

Os clássicos têm a incrível capacidade de continuar dialogando com um tempo ao qual não mais pertencem. Adjetivar Affonso Cláudio é uma missão que incorre na área superlativa. Não temo transgredir para o terreno do exagero ou da falsa modéstia em relação ao nosso parentesco, visto que estou amparada em registros documentais de uma obra de expressão inquestionável.

Somos todos sucessores da ancestralidade. É na literatura que encontramos a escrita de todas as lembranças. E é na história que resgatamos as raízes da transcendência. Através delas, ouvimos a ressonância de toda uma tradição. É nosso dever caminhar empenhados em assegurar às novas gerações o registro das características essenciais que nos tornam humanos.

Por Manoela Ferrari