Dezembro, 2020 - Edição 262

Súplica esculpida

Essa interessante imagem, recebida pela internet, poderia servir de ícone para o ano de 2020. Ela pode nos remeter a um pedido de socorro de Gaia (Mãe-Terra) e de seus viventes, que enfrentam dois grandes problemas mundiais na atual conjuntura: pandemia e incêndios florestais. O mundo se encontra devastado por queimadas de toda sorte e pelo flagelo do coronavírus. Desconheço a autoria do escultor do tronco falido, assim como a do fotógrafo. Ambos estão de parabéns. Essa imagem realmente “vale mais que mil palavras”. Sua alta densidade a suscita uma inesgotável polissemia que se desdobra infinitamente.

No primeiro plano, vê-se nitidamente um corpo feminino esculpido num tronco morto. As raízes se abrem formando uma cauda de vestimenta feminina, em verde musgo. É como se a mulher estivesse brotando do solo, seminua, braços erguidos aos céus, cabeça jogada para trás, num gesto de súplica, pedindo socorro. Os dois galhos correspondentes aos braços têm bifurcações que se multiplicam indefinidamente nas extremidades, ou seja, o pedido de proteção não é apenas para si. É para bilhões de braços erguidos aos céus, implorando clemência. Em segundo plano, há uma floresta seca, sem nitidez, em tons sombrios. A antropomorfização do tronco, em corpo feminino, contrasta com as formas aleatórias das árvores secas, ao fundo; a suavidade das linhas femininas contrasta com a aspereza do entorno; a claridade do primeiro plano contrasta com o cinza esfumado do segundo, zona de indefinição, com a profusão de elementos. O obscurecimento da imagem pode transmitir tristeza e inquietação diante do indefinido e do inexplicável.

O tronco/corpo esculpido pode corresponder à dobra deleuziana, ou seja, à transição entre dois polos, onde se dá a tensão da fricção dos opostos. Ele pode simbolizar também a efemeridade da vida, período transitório entre brotamento e fenecimento, nascimento e morte.

Vejamos alguns dados estatísticos do que nos aflige no mundo de hoje. Desde o início da pandemia, há dez meses na China e há sete meses no Brasil, computam-se cerca de trinta e sete milhões de casos da doença, com mais de um milhão de mortes. No Brasil, pouco mais de cinco milhões de casos com cerca de cento e cinquenta mil mortes.

Quanto aos incêndios deste ano, no Brasil, o número triplicou em relação ao mesmo período de 2019. Em outras partes do mundo, como Austrália, Ártico Siberiano, Estados Unidos, entre outros, os incêndios florestais deste ano foram os maiores de todos os tempos, segundo dados compilados pelas organizações especializadas.

Alguns estudos em desenvolvimento têm relacionado, ainda sem comprovação, possíveis casos graves de covid-19 com a poluição do ar causada pelos incêndios. Isso porque, em reservas indígenas, próximas aos incêndios florestais, a infecção pandêmica tem sido mais de 150% maior que no restante do país. Considera-se que, em todo o mundo, os incêndios sejam os maiores das duas últimas décadas, sendo que os da Amazônia, do Pantanal e do cerrado brasileiro são considerados sem precedentes. Isso é preocupante, pois sabe-se que o dióxido de carbono e outros gases liberados nas queimadas tornam a terra mais quente (efeito estufa) e as florestas mais secas, o que engendra mais e mais incêndios, num ciclo de retroalimentação.

O mundo parou em 2020 devido a um vírus até então desconhecido e letal. Ao relacionar essa imagem à atual circunstância, podemos detectar ícones que transmitem a inconclusa dialética barroca de tese/antítese, na qual não pode haver síntese para que se mantenha a tensão das dubiedades: vida/morte, início/ fim, alto/baixo, primavera/inverno, terra/céu, reino animal/vegetal… Tal tensão pode gerar ambiguidade, dúvida, imprecisão, imprevisão, incerteza, inconstância, indefinição, insegurança, instabilidade, medo, morte, ofuscamento, transformação… Na história da humanidade, há períodos em que prevalece a racionalidade, a exatidão, e há períodos em que prevalece o gosto pela imprecisão. Em época de paz e tranquilidade, há uma preferência pela estética clássica centralizada, harmoniosa, equilibrada, com cores suaves; em tempos conflituosos, a preferência preponderante recai justamente sobre a estética contrária: a barroca. O mundo contemporâneo, apesar de ser detentor de instrumentos de alta precisão e de avançada tecnologia, entrega-se ao prazer da imprecisão. Talvez, justamente a sensação de insegurança, gerada pela dubiedade, interligada ao prazer estético, tenha atraído meu olhar para essa floresta de símbolos.

Por Jô Drumond - Ocupa a cadeira nº 24 da Academia Feminina Mineira de Letras