Dezembro, 2020 - Edição 26x

Entrevista - Nélida chegou a Sagres

Entrevista transmitida em nível nacional, no Programa Identidade Brasil, apresentado, por Arnaldo Niskier, no Canal Futura. - Nélida Piñon


Nélida chegou a Sagres

A escritora Nélida Piñon lançou, no Rio, o seu novo romance, intitulado Um Dia Chegarei a Sagres. A propósito, ela concedeu a entrevista abaixo, no Canal Futura:

Arnaldo Niskier: Nélida Piñon é escritora, professora, tem muitos prêmios, inclusive internacionais, e acaba de lançar mais um romance, Um dia chegarei a Sagres. Por que esse romance depois do Vozes do Deserto, que fez tanto sucesso?

Nélida Piñon: Pouca gente sabe e agora comecei a contar. Em 2005, dando uma entrevista para a televisão portuguesa, a jornalista perguntou: “O que vai fazer depois?” Eu estava a caminho de Oviedo para recolher meu prêmio Príncipe de Astúrias. Eu disse que queria fazer um romance passado em Portugal, mas não mencionei Sagres, porque sabia que era uma chave muito privada que não queria, ainda, divulgar. Ela estranhou, mas queria demais fazer e tinha esse romance muito bem elaborado. Fui postergando por várias razões, porque sabia que, para fazer esse romance, precisaria ficar pelo menos um ano em Portugal.

Arnaldo Niskier: E foi o que aconteceu.

Nélida Piñon: Não pude fazer isso ao longo dos anos mais tarde, porque tinha meu cachorrinho, Gravetinho, que era muito rebelde e transcendente. Ele era grande e não poderia ir na cabine do avião, teria que pô-lo no porão. Nunca faria isso, porque ele podia até ter um problema cardíaco, então me sacrifiquei por ele. Quando ele morreu, pensei: “Agora é o momento de devotar minha vida a esse romance.” Fui para Lisboa, fiquei um ano na capital e dali visitava e revia até as cidades que já conhecia. Por que fazia isso? Já tinha uma pesquisa profunda, sabia tudo do que precisava saber. Eu estava atrás das paisagens, porque as paisagens falam, murmuram, elas foram contempladas pelos grandes mortos de Portugal, que estudei do século IX até o XV. Visitava as paisagens, colhia os ruídos da língua portuguesa, mesmo a língua falada hoje eu conseguia ou tentava conseguir invadir esses ruídos e chegar ao português que teria havido lá longe. Como a língua evolui através dos sentimentos, das emoções do povo, sobretudo do povão, o povo lavrador? Me abasteci de tudo isso, tenho a impressão que fui feliz no sentido de ter correspondido ao que buscava.

Arnaldo Niskier: O livro é um espetáculo, acabei de ler, é um livro de mais de 500 páginas e foi uma atração permanente pela qualidade literária, pela qualidade do texto e pelo enredo. Fiquei curioso de saber por que você considerou esse um romance perigoso. Por que essa expressão?

Nélida Piñon: Perigoso para mim, porque estou enfrentando um universo que não é meu, universo português, embora ache que o Brasil tem muito mais dos ingredientes portugueses na sua cultura e na sua índole do que queremos supor. Acho que o Brasil é muito mais ibérico do que ele imagina, penso que ele não tem essa noção. A cultura, a antropologia toda aqui dentro, um palimpsesto riquíssimo que está no Brasil que veio também do mundo ibérico, dos imigrantes que chegaram ao Brasil. Sou grande defensora dos imigrantes. Então é perigoso, porque estou enfrentando uma odisseia nova de outro continente, de outra península, de outro país, por mais que ame este país desde menina. Perigoso, porque sabia que havia temas, sobretudo os temas sexuais, que trato no final e que vou moldando, porque percebo que o desejo humano não tem regra moral.

Arnaldo Niskier: Nesse livro que agora foi lançado, você aborda, vez por outra, a questão sexual, inclusive um romance aparentemente estranho entre Aquim, o africano, um negro muito bonito, segundo expressa o livro, e o nosso personagem que é o Mateus. De onde surgiu essa ideia?

Nélida Piñon: Primeiro, vamos aos primórdios do desejo do corpo. O que predomina no livro é o mundo lavrador, os camponeses sacrificados, repudiados pelo cetro, pelo trono, pela monarquia, sempre miseráveis, sempre pobres. Um mundo que, de certo modo, conheci na Galícia, só que conheci como menina, mas nunca perdi de vista a humanidade triste e melancólica do mundo camponês. Nesse mundo, a sexualidade tem muita importância, porque é um dos tesouros que você tem ao seu alcance e, além do mais, não vejo uma sexualidade com frescor, com juventude. Via sempre, no meu romance, que o Mateus e o avô Vicente desfrutavam de uma sexualidade como salvação. Era o que eles tinham à disposição deles, tanto que você vê que Mateus tem um ímpeto sexual muito forte, muito violento e de que ele se arrepende, não é feliz com sua sexualidade. Não quer dizer com isso que fosse gay, não. Ele buscava, talvez na sexualidade, um dos recursos da sua identidade portuguesa.

Arnaldo Niskier: Ele foi enamorado praticamente a vida toda pela Leocádia, mas não foi feliz nessa paixão.

Nélida Piñon: Mas, por outro lado, abre-se diante dele quase que uma provocação de um continente novo. A África era linda, cheia de vida, e ele era triste. O avô era triste. Ele perdera a vizinhança do Minho, tem uma vida triste. Mateus foi um peregrino na terra de certo modo. Ele não tinha compensações senão do sexo fugaz...

Arnaldo Niskier: Seus personagens, como bons portugueses, eram tristes, como triste é o fado de modo geral. Explique melhor isso, você que é de origem espanhola.

Nélida Piñon: Portugal é um país que tem uma história extraordinária. Pouca gente a conhece. Se você percorre a trajetória portuguesa desde seus primórdios, vamos, por exemplo, dizer desde o século XIV, XV, você se depara com sortilégios, com uma riqueza, com uma audácia sem limites. É um povo, aquela parte que era vizinha do Atlântico, que se despojava de qualquer coisa para se lançar à aventura do mundo. Se você pensa o que eles fizeram, lançando-se nos mares onde supostamente havia monstros, correntes fatídicas... Acho que Portugal inventou uma outra imaginação para o mundo. É isso que quero dizer. Uma outra maneira de inventar as coisas, dar nome às coisas, de criar extravagâncias narrativas. Os portugueses o fizeram. Sempre me impressionei muito com o Cabo Bojador, porque ninguém conseguia passar...

Arnaldo Niskier: Você cita o Bojador várias vezes. Isso é influência de Camões?

Nélida Piñon: Camões, mas, sobretudo, da figura de um ajudante ou um timoneiro, que trabalhava como braço direito do infante, que era Gil Eanes. Esse cidadão vai na primeira viagem, primeira tentativa dele de dominar esse cabo. Caso fosse possível vencer esse cabo e fosse além, significava que existia terra além e que talvez pudessem chegar adiante, que é a conquista do mundo. Ele vai numa nau pequena, miserável, a primeira tentativa. Não consegue. É uma coisa terrível. Você pode imaginar? Eu dormia pensando nessa primeira viagem. Ele se prepara outra vez, naturalmente estimulado pelo Infante, que devia exigir isso. Ele vai e consegue vencer, superar os limites sem destroços, sem ter perecido no cabo. Esse cabo, realmente, é uma coisa que pode-se dizer: antes do cabo e depois do cabo. O mundo é dividido pelo cabo. As figuras que vou compondo, muitas vezes, não posso explorar demasiadamente, porque senão seria um outro romance, mas essas figuras estão presentes no imaginário do camponês Mateus. Ele ganha um alento, sente que talvez a salvação, a redenção dele é admitir que é de uma nação, porque digo o seguinte: o país é pobre, mas, quando você tem uma nação, você tem um outro país dentro da nação. Ele se apega à grandeza do Infante para sobreviver. Ele, como toda sua gente, era muito triste, o pão era muito difícil, eles quebravam as mãos no arado. Antes não havia arado, era enxada. Quando menina, na Galícia, me permitiram que empurrasse o arado, eu levava as vacas ao monte, debulhava as espigas de milho. Ao debulhá-las, quando aparece uma espiga vermelha, você está autorizada a exigir um beijo de quem você quer.

Arnaldo Niskier: Vou procurar onde tem essa espiga. Você também trata, como uma rainha que é da literatura, de forma extraordinariamente simpática o Infante Dom Henrique. Por que essa escolha pelo Infante Dom Henrique? Você cita muito esse herói no seu livro. O que atraiu mais na figura dele o seu interesse?

Nélida Piñon: Ele amparava o ideário modesto, não do Vicente, do Mateus, ou seja, de certo modo o Infante permite que o povão, que o lavrador modesto quase analfabeto tenha uma utopia. Sou uma defensora das utopias dos pobres, utopia não pode ser só dos ricos, dos poderosos. Não, utopia pode ser a construção de um polo... Camões perpassa também o romance. Como é que você pode falar de Portugal sem, de algum modo, abordar Camões? Camões fala da ínclita geração. Quem forma? São os filhos de Dom João e da Lencastre, da inglesa que vem se casar com o rei bastardo. Esses irmãos são brilhantes e um deles é o Dom Henrique, não é o herdeiro do trono. Ele tem um fracasso terrível, em Ceuta, que o massacra para sempre e tem uma dor que vai acompanhá-lo até o final da vida. Imagino, interpreto essa dor, porque ele, de certo modo, aceita, entrega o irmão, Dom Fernando, para o mundo árabe e vai para uma prisão terrível onde ele morre. Ele vai ter esse problema na consciência por ter sido, de algum modo, não o carrasco, mas ele traiu o irmão.

Arnaldo Niskier: Queria que você falasse um pouco da Escola de Sagres.

Nélida Piñon: Disse aqui para você poder ver como ele estava cercado de títulos e poderes. Após a derrota de Ceuta, Dom Henrique quer conquistar o mundo. Ele sabe, ele intui, de forma extraordinária, que há um universo além daquele território pequeno. Ele, então, sedia ali em Sagres, que é um local absolutamente extraordinário, visitei algumas vezes...

Arnaldo Niskier: Grandes cientistas nasceram e se desenvolveram na Escola de Sagres.

Nélida Piñon: Foi uma solicitação dele, ele que os convocava, ele que fez tudo isso, ele tinha uma vocação para grandeza única e, ao mesmo tempo, não aceitava qualquer obstáculo. A sensação, no romance, é de que ele estava aguardando redivivo, como se voltasse, fosse um ressurrecto, que o pobre Mateus, o camponês, chegue para lhe passar, de algum modo, o bastão da grandeza de Portugal. Essa região tem um promontório extraordinário. Acho que há um fenômeno ali que explica por que conseguiram lançar as naus nas águas atlânticas, que é o vento, é um vento inóspito, mas poderoso. Então o vento era propício às navegações. O Infante, que está em Camões, é muito original num detalhe que chama atenção do Mateus. Ele nunca se casou, nunca teve filho, não deixou uma linhagem, ou seja, era um solitário, não sabemos das histórias amorosas dele, como do Mateus sabemos pouco também, era um solitário. Tanto que você vê que o Mateus, depois do fracasso dele em Sagres, que não sabemos senão no final do livro, só o final do livro explica o que aconteceu em Sagres, que o fez fugir de Sagres. Ele se torna um marinheiro do mundo, chega a passar pelo Brasil... Ele fica impressionado com a escravidão, mas só vai descobrir no final da vida, mas é muito rápido, que o Infante também negociou com o tráfico. Isso o deixou desesperado, mas ele já tinha muita idade. No final do livro, há uma esperança, uma porta aberta para ele, que é a figura da Amélia.

Arnaldo Niskier: Quero, finalmente, dizer que você produziu mais uma obra-prima. O livro Um dia chegarei a Sagres é muito bem-feito, muito bem construído, muito bem escrito. Tive um prazer imenso, nesses tempos de pandemia, de ler o livro do começo ao fim com um prazer indizível. Parabéns, Nélida Piñon.

Por Arnaldo Niskier