Dezembro, 2020 - Edição 262
Inventário de um desassossego
Livro de estreia de André Osório, Observação da gravidade (Ed. Guerra
e Paz, Lisboa, 2020) revela-nos um jovem autor português que aos vinte e
um anos, impõe-se por uma precoce, mas plena maturidade criativa. Esse
conjunto de poemas resulta não apenas do olhar imerso num lirismo muito
peculiar, mas também de uma introspecção metafísica.
Dividido em três seções – Gravuras, Observação da Gravidade e
Museologia – sua cartografia poética percorre múltiplos cenários numa
revisita àqueles sítios que são referências para a construção de sua personalidade e de sua criação literária. Espaço, tempo e memória alinhavam
uma cartografia sensorial, a partir de uma aguçada sensibilidade e de uma
nostalgia que vasculham os espaços domésticos, a partir do qual reverbera
um amplo campo de referências pessoais e literárias.
Permeado por um eu lírico nada exacerbado e uma reflexão sobre sua
relação com os mundos que o cercam (o geográfico, o afetivo, o psicológico),
o autor desnuda as camadas de sua precoce mas intensa experiência vivencial, sem a tentação do confessional.
No trânsito por universos e atmosferas que oferecem matéria e
circunstância para uma poesia de mergulho em um presente repleto de
passados ainda tão recentes, a infância e a adolescência são os emuladores
melancólicos de uma identidade que se quer resgatar e de uma ancestralidade que busca reafirmar. Como no poema “A apanha da conquilha”, a delicada escritura de André Osório remete-nos àquele sentimento já expresso
por Carlos Drummond de Andrade – É o menino em nós/ ou fora de nós/
recolhendo o mito – e que habita o seu inconsciente familiar, social e humano e projeta-se com inegável carga metafórica e onírica, culminando num
sutil inventário existencial.
Entre poemas mais longos e versos que optam pela economia de
meios, a poesia de André Osório constrói-se a partir de imagens do cotidiano e palmilha um imaginário que flerta com outros campos artísticos
(como a música, o cinema, as artes plásticas). Diáfana, a linguagem que
bebe nessas várias fontes estéticas esparrama-se por uma intertextualidade,
evidência de seu repertório de leituras tanto literárias quanto do mundo,
ao mesmo tempo em que nota-se um equilíbrio entre forma e conteúdo, a
presença de harmonia e ritmo na híbrida construção poética, por todos os
ângulos, estruturada com rigor, densidade temática e cristalinidade verbal.
Observação da gravidade é uma radiografia dos escaninhos familiares,
de onde emula suas miragens e pressiona o gatilho da memória, por meio
do que escreve uma biografia coletiva a partir dos mundos que se formaram
ou agora são reinventados em chave de catarse. Osório mira-se pelo “olho
de uma casa/ que olha para dentro”, espaço mí(s)tico, lúdico e telúrico pelo
qual vislumbra um mapa do desassossego, na rota de sensações e explosão
dos sentidos, beiral de onde o poeta pinta com as palavras a caleidoscópica
gravura de seu percurso humano e social movido pela inquirição. Compõe,
assim, um fecundo museu de preciosidades ao rastrear questões que lhe são
essenciais em meio aos labirintos, conflitos e demandas contemporâneas,
com o amálgama de um intimismo sem afetações, que converge numa
arquitetura poética, em que a exegese da realidade interior se conecta com a
semântica do mundo exterior e conflituoso, prospectando-lhes as minúcias,
num exercício depurado e numa dicção povoada de símbolos.
O desvelo com o valor e a função da arte também está expresso nesse
livro, como se lê em “Auschwitz”, sintomaticamente uma alegoria da necessidade de se estabelecer uma espécie de campo de concentração textual, em
que o trabalho do autor, em contínuo processo, requer uma insularidade
necessária para alcançar o esmero da palavra final. Em “Poema”, o autor
declara-o como seu regaço, o território em que mais se sente à vontade, o
seu refúgio estimulante, dele extraindo a seiva elaborada de uma rica escritura, pois “A sua arte é a de auscultar o vazio/ pela artéria de dentro” e, numa
solidão luminosa, alimentar sua fome de dizer.
A poesia que inaugura a galáxia literária de André Osório é original,
límpida e epifânica: dissemina sua força gravitacional como obra de dimensão superior, que impulsiona “um voltar às raízes,/ à terra...”, pois o autor
compreende, na complexidade das escrevivências, que sempre se está a
realizar um encontro de contas com a vida, as relações e as pessoas, eis que
“aí reside o mundo... Aí ele escapa”. E nas “intermitências” entre o chegar e
partir, entre o visto, o vivido e o sentido, introjeta-se o espelho que agudiza
os dilemas da caminhada, mas “os faróis esquadrinham/ o seu reflexo” e o
poeta, com seu facho, se apazigua nos amplos espectros de sua poesia, essa
arte que, no dizer de Jean-Claude Pinson (“Para que serve a poesia hoje?”),
é “uma física repleta de incerteza”, instância que “faz vibrar em nós a corda
enigmática do tempo, isso mesmo em que se mostra mais inescrutável.”