Dezembro, 2020 - Edição 262
Branca Alves de Lima - “Alfabetização pela Imagem”
Morreu, neste início de século e de milênio, a educadora Branca Alves de
Lima, aos 91 anos, deixando órfãos aqueles que acreditam que a alfabetização com
cartilhas não só funciona muito bem como é mais simples do que essa “moda” atual
do construtivismo.
O falecimento de “Dona” Branca não mobilizou o mundo educativo nem
a imprensa. Consegui localizar nada mais que um anúncio fúnebre sem pompa,
um anúncio padronizado, silencioso, discreto e tímido em uma coluna intitulada
“Falecimentos”, no rodapé de matérias sobre violência na capital:
“Prof. Branca Alves de Lima – dia 21. Professora e escritora, era autora da
cartilha Caminho Suave. Filha do Sr. Manuel Silveira Lima e de D. Isaura Alves de
Lima, era irmã do Dr. Álvaro Alves de Lima, de D. Henriqueta Alves de Lima e de
Altair Alves de Lima Liguori, todos falecidos. Deixa cunhada e sobrinhos. A missa de
sétimo dia será celebrada no dia 27 (sábado) as 7.30, na Igreja de Santo Agostinho,
na Praça Santo Agostinho, Aclimação. (O Estado de São Paulo, 25 de janeiro de 2001,
p. 11)”
A vida de Branca Alves de Lima, autora da cartilha
Caminho Suave, é a síntese de um dos principais males
– se não do principal mal – da Educação brasileira: o
enorme desrespeito dos gestores e das políticas públicas
educacionais em relação aos professores e professoras,
aos estudantes e suas famílias.
O sucesso da cartilha Caminho Suave. “Eles” (o
governo, o MEC e o Guia do Livro Didático, o Conselho
Nacional de Educação, as secretarias de Educação etc.)
estão projetando, quase decretando, que os alunos não
usem mais cartilhas.
Veja hoje o caso dos ciclos. Professores e professoras que há décadas têm na reprovação seu principal
recurso de disciplina foram, de uma hora para outra,
proibidos de usá-la. Mesmo com a proibição e à margem do Currículo Escolar, avós, pais, parentes, amigos
e professores indicam a cartilha Caminho Suave, na
alfabetização de seus entes queridos.
Branca Alves de Lima concebeu, em meados do
século passado, a cartilha “Caminho Suave”. Mais de 48
milhões dos brasileiros adultos de hoje foram alfabetizados por ela, inclusive o presidente da República, Jair
Bolsonaro.
Branca Alves de Lima nasceu, viveu e morreu na
capital, São Paulo, no entanto não foi possível encontrar
dados sobre a infância e adolescência da menina que
nasceu em um agosto de 1910, na região do Brás. Hoje
sinônimo de comércio, a região do Brás foi palco de uma
histórica luta operária na industrialização e homenageia um compatriota dos pais
de Branca, português e proprietário de terras: Benemérito José Brás. Nas primeiras
décadas do século XX, a região era rural e abrigava imigrantes, sobretudo italianos e portugueses. A outra moradia de Branca foi na região de Fagundes e depois
Liberdade, onde morou até sua morte, no ano de 2001.
A respeito de sua formação inicial, Branca pode ter estudado a instrução
primária em um Grupo Escolar da região, pois a capital, São Paulo, foi um dos
primeiros lugares a receber a implantação dessas instituições na última década do
século XIX. Projeto republicano, o Grupo Escolar, de ensino primário e graduado
em séries, convocou configurações no campo pedagógico da escola primária, a
despeito da não homogeneização dessas escolas no Brasil.
Trata-se de uma escola pública que serviu, a princípio, também para formar
boa parte da elite, pois a intenção republicana de educação popular ainda demoraria a ser instalada. Na região do Brás, foi criado na década de 1990 o Grupo Escolar
Romão Puiggari, uma escola de referência para os filhos dos imigrantes com dificuldade na língua.
O espanhol Romão Puiggari foi professor da Escola Normal de São Paulo
e, assim como Branca, foi autor de livros escolares. Acompanhado do professor
Arnaldo Barreto, lançaram, no ano de 1895, pela livraria Francisco Alves, a série de
quatro volumes de seus livros de leitura da série Puiggari-Barreto, que conquistou
em 1904 a medalha de prata na Exposição Universal nos Estados Unidos, conforme
afirmou Valdez (2004).
Neste Grupo Escolar, Branca foi professora, conforme será abordado posteriormente. A menina Branca pode ter estudado em um dos colégios confessionais
da época, espaços que atendiam filhas de uma burguesia paulista em ascensão,
oferecendo uma educação religiosa e moral em regime de internato ou semi-internato. Também poderia ter tido uma formação doméstica, possibilidade existente
na história da educação brasileira, mas, diante das incertezas, o que temos de mais
concreto é sua formação na Escola Normal do Brás, estabelecimento constantemente citado como formação máxima da professora.
A Escola Normal do Brás, criada quase junto com o nascimento de Branca,
1912, faz parte de um projeto de expansão de escolas destinadas à formação de
docentes para cumprir as exigências republicanas do ensino primário.
As escolas normais públicas surgiram no Império brasileiro, na primeira
metade do século XIX, no entanto coexistiram, historicamente, com os conflitos
do público com o privado, tornando-se espaços, muitas vezes, frágeis, efêmeros
e repletos de continuidades e descontinuidades, consolidando-se, sobretudo, na
segunda metade do Brasil oitocentista.
De acordo com Santos (2013), a princípio, era Escola Normal Primária do
Braz (com z), diferenciando-se por ser a primeira escola pública da capital destinada à formação de professoras primárias do sexo feminino. A mesma autora aponta
ainda que, anexo à Escola Normal, instalou-se o Terceiro Grupo Escolar do Braz,
anteriormente, denominado Seção Feminina do Grupo Escolar Modelo do Braz,
que recebia uma frequência grande de crianças de famílias de imigrantes do bairro.
O site do Centro de Referência Mário Covas revela a mesma data de instalação e os nomes recebidos em ordem cronológica: Escola Normal Feminina da
Capital, Escola Normal Padre Anchieta, Escola Normal e Ginásio Estadual Padre
Anchieta e atualmente é Instituto de Educação Padre Anchieta.
Em entrevista dada no ano de 1967, Branca registrou sua preocupação com
o processo de alfabetização, que iniciou nos anos vinte quando frequentou essa
Escola. Antes mesmo de concluir o curso, em 1929, já lecionava:
“Na Escola, eu aprendi a ensinar pelo método analítico puro – hoje chamado global – e, em 1931, ingressei no magistério público e apliquei este método por
cinco anos. Mas foi uma decepção; não tive os resultados
esperados. Então resolvi ir modificando, por baixo do
pano, passando a usar o analítico sintético, mas partindo
da palavra (O Estado de São Paulo, 20 de agosto de 1967,
p. 19)”
Com o diploma de normalista em mãos, aos dezenove anos, Branca iniciou sua jornada em escolas no interior de São Paulo.
Em entrevista dada ao jornal O Estado de São
Paulo, no ano de 1991, registrou que iniciou sua carreira
profissional em uma escola rural de Jaboticabal, pois,
naquela época, segundo ela, no início da carreira era preciso lecionar, no mínimo, um ano na zona rural e aprovar,
alfabetizando, no mínimo quinze alunos, para depois
poder dar aulas em uma classe de uma boa escola urbana. Aparentemente, pelos dados obtidos, Branca passou
bem mais que o tempo mínimo exigido. A mesma matéria
registrou que deu aulas em vários grupos escolares no
interior do estado e que, por onde passou, se preocupava
com a dificuldade dos alunos em aprender a ler, o que ocasionava um índice elevado de reprovação. No ano de 1936,
com vinte e cinco anos, a jovem professora lecionava em
um grupo escolar de São José do Rio Preto, onde iniciou
experiências de alfabetização com imagens associadas às
sílabas, obtendo bons resultados.
O método analítico, também conhecido como
“método olhar-e-dizer”, defende que a leitura é um ato
global e audiovisual. Partindo deste princípio, os seguidores do método começam
a trabalhar a partir de unidades completas de linguagem para depois dividi-las em
partes menores. Por exemplo, a criança parte da frase para extrair as palavras e,
depois, dividi-las em unidades mais simples, as sílabas.
O método proposto por Branca Alves de Lima associa imagens e letras com
o objetivo de facilitar o aprendizado. A letra A é escrita no corpo de uma abelha,
a B na barriga de um bebê, a V compõe os chifres de uma vaca. Assim, a cartilha
Caminho Suave tornou-se conhecida como um método de “alfabetização pela
imagem”.
Os métodos de alfabetização podem ser divididos em dois grandes grupos:
os sintéticos, do micro para o macro (primeiro as letras, depois as sílabas e, em
seguida, palavras e textos); e os analíticos, do macro para o micro, que partem da
leitura da palavra e das frases para apenas depois destacar as sílabas e letras.
Na cartilha Caminho Suave o material apresenta inicialmente as vogais,
depois forma encontros vocálicos e parte para a silabação. A autora juntou princípios do método sintético com o analítico, o que fez bastante sucesso à época.
Seguramente, a carreira da professora Branca não é diluída em sua trajetória
da de autora de livros escolares, pois sua experiência é sempre retomada para justificar a composição de seus livros, em especial a cartilha Caminho Suave.
No entanto, é significativo o lugar que suas publicações, em especial a cartilha, ocupa na história da professora.
Esta é a modesta e sincera homenagem que posso agora prestar como tributo de gratidão à memória daquela que, sob moldes humaníssimos e quase maternos, abriu-me a réstea de luz da alfabetização da cartilha Caminho Suave de nossa
educadora paulista, Branca Alves de Lima.