Dezembro, 2020 - Edição 262
Abracei Nélida Piñon

A sexta-feira deixava claro que a semana já havia cumprido seu
papel. Um frio desnecessário atravessava o início de novembro. E um
sol me explicava que o belo mora no alto.
Antes de uma sopa, cheia de quenturas, sentei em uma poltrona e
abri o mais recente livro de Nélida, Um dia chegarei a Sagres. Conheço
a autora, há algum tempo, de textos e de ternuras. De comunhão com
suas palavras e de admiração ao seu agir generoso no tema da humanidade.
Começo a leitura. Os olhos vão enxergando palavras que vão significando sentimentos. Um nascimento dorido. Um filho sem mãe. Um
avô cioso de seu ofício de apascentar a vida. E a simplicidade banhada
por ventos de antiguidade. O menino precisava partir. O chão da estrada seria parte de seu impulso valente em busca de um tal Infante. Um
que morou no passado, e um outro que por ele se permitiu ressurgir, no
meio do caminho.
No caminho de Nélida, não faltaram as tais pedras de Drummond.
O braço alquebrado atrapalhou nos movimentos da escrita, os olhos
com algum cansaço exigiram que a grande dama da literatura fosse
escrevendo a mão. Como no passado. E, assim, as quinhentas páginas
foram nascendo.
Nélida não é mulher de reclamos. Gosta da vida como quem
assinou um contrato com a escritura da felicidade. E, se havia pedra no
meio do caminho, no meio da pedra encontrou Nélida caminhos tantos
para dar curso ao seu romance. O viajante tem o nome de Mateus. O
professor que palmilhou heroísmos em sua mente falou de Camões, de
sua língua e de sua pátria.
Experimento a sopa e agradeço a quentura do dia. O livro fica
comigo. Aguarda uma pequena pausa. E me acompanha noite adentro.
Durmo depois de Mateus ter chegado a Sagres. E acordo com a curiosidade própria dos que amam uma história bem contada.
Mateus idealiza um amor. A tia forte, do amor idealizado, tranca o
futuro dos dois. E um outro amor acontece no inusitado. E o desfecho é
épico. As palavras dançam um som de Wagner, tão fortes, tão leves.
A manhã de sábado me acompanha até a volta a Lisboa. No almoço, como ovos com arroz e feijão, e couve refogada, e penso no desfecho.
Antes do despedir do dia, eu abracei Nélida ou o livro de Nélida ou
a dignidade de Nélida. Quem é essa senhora que não tem medo de evocar, em um único livro, todos os sentimentos do mundo? Quem é essa
escritora que elimina qualquer desnecessidade para que cada construção sintática se aloje na mente humana e cumpra o seu papel?
Ouço nos textos o seu sonho de um país sem radicalismos. Em
que, das dores, brotem possibilidades. Em que as possibilidades se
tornem concretudes. A literatura nos deságua sentimentos para que
nos fortaleçamos de repertório, de compreensões, de vontade. Tenho
a vontade de que mais leitores surjam, de que menos superficialidades
abatam nossa razão. Tenho a vontade de um mundo sem violência, sem
desrespeito, sem precipitações nos julgamentos.
O sol vai se despedindo mais uma vez. Amanhã, será domingo em
mim e nas personagens de Nélida que pedem licença para permanecer.
Eu autorizo. Será bom ficarmos juntos para espantar os frios.