Dezembro, 2020 - Edição 262
A última vez
Ontem abandonaram um videocassete na lixeira do meu prédio.
Custei a identificá-lo. Pensei, primeiro, tratar-se de um aparelho de DVD
antigo. Depois, de um receptor de home theater. Até enfim perceber que era
um velho amigo. Sorri pelo reencontro, sem levar em conta o padecimento
indigno, o fim indigente, num lixo, daquele objeto tão simpático à minha
memória. Naquele momento, inevitavelmente retornei o pensamento ao
dia em que meu pai chegou em casa com o nosso primeiro videocassete. Se
muito, eu tinha sete anos de idade. Era um aparelho de segunda mão que
sequer disfarçava tal condição. Não vinha protegido por caixa, mas embrulhado num envelope pardo – como os que o meu pai todo dia trazia para
casa, estufados de processos, pareceres, enfim, papéis e mais papéis que
eu sonhava em dar destinação aeronáutica, lançando-os do sexto andar,
depois de transformados em aviõezinhos.
Um diamante negro reluziu quando o seu Antônio rasgou o envelope
e o videocassete se exibiu portentoso, moderno. Lembro-me de tudo deste
instante – dos pulos que dei na cama, da minha irmã lendo a sinopse do
filme da Moranguinho que meu pai levara para ela e até do sentimento
de pertencimento social pelo qual fui tomado. Já não seria mais, dali em
diante, o único garoto da redondeza sem videocassete em casa. Ah, sim, de
tão marcante o evento, lembro-me até do cheiro agradável que perfumava
o quarto dos meus pais neste dia.
Depois daquele encontro fortuito com um videocassete no lixo, notei
que me lembrava de tudo referente à chegada do aparelho à minha casa,
mas e da sua despedida? Tentei então resgatar quando teria sido a última
vez que usei o hoje malfadado videocassete. Chutei que deve ter acontecido
há uns 23 anos, quando revi a minha formatura pré-escolar, ocorrida em
1989.
Mas é isto, um palpite, uma suspeita, enfim, a data é um chute. O fato,
não: houve uma última vez! Algum dia eu coloquei, pela última vez, uma
fita cassete nessa geringonça outrora objeto de ostentação, elevação social.
Esse dia aconteceu e eu nem notei. Como também não percebi que um dia
eu me reuni com os amigos de infância para jogar o futebol terminativo.
Da mesma forma que, um dia, pela última vez, eu chamei a professora de “tia”; pela última vez tomei guaraná Baré – a bebida preferida da
infância; pela última vez eu fui pego no colo pelos meus pais; pela última
vez abracei o amigo que partiu cedo demais... Tudo sem notar que era a
última vez.
Precisou de um videocassete lançado ao lixo para esta reflexão me
sobrevir: a vez derradeira acontecerá sempre. Com tudo: o trivial e o essencial. Haverá a última prosa, o último livro, a última música, a última árvore
escalada, o último encontro, o último passeio, o último beijo, o último abraço, o último “eu te amo”, o último suspiro.
Quando possível, portanto, note as despedidas. Mas, acima de tudo,
viva as chegadas, as jornadas e as próprias despedidas em intensidade que
lhe faça capaz, até mesmo, de se lembrar do perfume que impregnava o ar
no doce momento.