Novembro, 2020 - Edição 261

Tempos de inclemência

Vivemos tempos de inclemência, tempos em que a angústia parece não deixar lugar à poesia. Quando a humanidade está ameaçada por uma pandemia que põe em guarda todos os homens, embora ceife muito mais os mais pobres, deveriam todos, sobretudo depois dos trabalhos de Levi Strauss e Margaret Mead, perceber que só há uma raça, a raça humana, e que somos todos pertença dessa raça triunfante sobre a terra, apesar das ameaças constantes que sobre ela lança a natureza. Porém, aquilo a que assistimos é o ressurgir frequente do preconceito, da ignorância e do erro. Odiar, segregar, considerar inferior o outro apenas pela cor da pele é o exemplo da mais repugnante ignorância que, como uma pandemia, afeta ainda largos setores da humanidade em todas as nações.

Assassinar alguém porque tem a pele negra é duplamente criminoso, por aliar a malvadez à ignorância. Há duas sociedades em que esse duplo crime é repetitivo: a americana e a brasileira. Mas se na sociedade americana o crime faz nascer a revolta, a sociedade brasileira parece anestesiada e os crimes racistas que vão acontecendo diariamente não trazem para a rua multidões em protesto, como nos EUA. Talvez porque o Brasil sempre se considerou uma nação multirracial, onde os negros não eram segregados pelos brancos através da imposição de escolas diferentes, de transportes públicos diferentes, de espaços de convívio diferentes.

Porém, a segregação era (é) bem patente no nível de rendimentos, na escolaridade, na saúde, no preenchimento dos quadros da política, da justiça e da economia. Em tudo isto, e muito mais, os negros são altamente desfavorecidos e segregados, embora, em número, constituírem cerca de 60% da sociedade. E, no entanto, as manifestações de protesto não atingem a força nem a frequência das que acontecem nos EUA, apesar da sociedade americana possibilitar uma ascensão social dos negros que a brasileira está longe de possibilitar.

Infelizmente, os negros e mestiços brasileiros não tiveram, até hoje, um líder que se parecesse sequer com Martin Luther King. O medo e a submissão são explicações para isso, aliadas à impunidade geral dos que cometem crimes contra negros ou mestiços. É tempo dessa maioria de brasileiros tomar o seu destino nas suas mãos. Se o não fizer, a injustiça e o crime continuarão a criar a desigualdade e a miséria, e, com elas, fazer do Brasil o país do futuro sempre adiado.


Reescrevendo a história



Entre as manifestações que têm acontecido por todo o mundo contra o racismo e a violência policial, vão surgindo atos de vandalismo sobre personagens históricas que manifestam a enorme ignorância de quem os praticam. No caso português, a vandalização da estátua do padre Antonio Vieira, em Lisboa, com o pretexto de que defendeu a escravidão dos negros, é a manifestação de um caso grave de ignorância, não só da personalidade ímpar que foi esse grande homem da cultura portuguesa e brasileira, como do contexto histórico em que viveu.

Julgar os fatos e os homens do século XVII à luz do pensamento do século XXI é uma estultícia. Mas acusar Vieira de racismo é uma demonstração de lamentável ignorância, quando se sabe bem quanto ele combateu a escravatura dos indígenas e o tratamento cruel dos escravos negros. Nunca Vieira defendeu a escravatura. Defenderam-na Platão e Aristóteles, e não é por isso que vamos queimar as suas obras geniais. Há atos que descredibilizam justas manifestações e revoltas. A vandalização da estátua de Antonio Vieira é um deles.

Por Henrique Dória - Escritor, Jornalista e diretor da Revista InComunidade (Porto, Portugal).