Novembro, 2020 - Edição 261
Irmã Cleusa, educadora e mártir
A história de vida – e de morte – da irmã Cleusa Carolina Rody
Coelho (1933-1985) trouxe-me à memória a proposição de Walter
Benjamim de que “cada época ao sonhar a seguinte, força-a a despertar”.
Benjamim não sobreviveu ao tempo sombrio do nazismo, assim como
irmã Cleusa Carolina, professora capixaba que optou pela vida religiosa,
sucumbiu lutando pelos valores nos quais acreditava. O pensamento de
Benjamim é um alerta sobre o perigo do esquecimento e a importância
de se trazer à luz a memória dos oprimidos, pois apenas assim poderá
ser criada uma barreira contra a barbárie.
Irmão Cleusa Carolina pediu dispensa do trabalho que realizava e, sem remuneração, mas determinada, foi viver entre os índios
Apurinã, na Amazônia. Na sua última transferência para a cidade de
Lábrea, em 1982, a freira capixaba uniu forças com aqueles que ela
considerava serem os mais vulneráveis da sociedade, “os mais pobres
e marginalizados”, apoiando as comunidades na luta pela demarcação, em um momento no qual os latifundiários invadiam e ocupavam
as terras indígenas, muitas vezes com a conivência de autoridades
locais. Representante do Conselho Missionário Indigenista, irmã Cleusa
Carolina era professora de formação e a sua trajetória como missionária
sempre esteve ligada à educação.
A história de vida dessa freira que dedicou 32 anos ao serviço missionário começa em Cachoeiro de Itapemirim, ES, no dia 12 de novembro de 1933. Aluna brilhante, ao final do curso de magistério, recebeu do
Governo do Estado do Espírito Santo o prêmio de escolher em qual escola lecionaria, foi nesse momento que optou pela vida religiosa. Em 1952,
na Comunidade de Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, Cleusa Carolina
adotou o hábito e tornou-se Sór Maria Ângelis.
Em 1954, quando foi enviada pela primeira vez para as Missões
de Lábrea, iniciou a criação do Educandário Santa Rita, destinado às
crianças carentes da cidade, onde trabalhou como professora primária.
No ano de 1958, de volta ao ES, em Colatina, emitiu votos perpétuos de
pobreza, obediência e castidade. Mais tarde, irmã Cleusa Carolina decidiria não vestir mais o hábito religioso, usando apenas roupas simples
recebidas como doação, ato motivado pelo desejo de diminuir diferenças e distâncias entre ela e as pessoas que atendia no trabalho fraternal.
Irmã Cleusa Carolina abraçou a sua vocação como educadora e,
no período que passou em Vitória, que se estendeu até 1973, dirigiu
o Colégio Agostiniano e obteve Licenciatura Plena em Letras Anglogermânicas, na UFES, dedicando-se, também, à formação de lideranças
para criar Comunidades Eclesiais de Base. Foi nessa época que irmã
Cleusa Carolina voltou a adotar o nome de batismo.
O trabalho missionário estendeu-se dos centros educacionais para presídios, lares de
pessoas doentes e leprosário. No período que esteve em Manaus, a freira
ia para as praças ao encontro dos meninos de ruas, levando para a sua
casa alguns deles que corriam perigo de vida, passando assim a ser mal
vista pela polícia, acusada de ser conivente com a desordem e protetora
de infratores e marginais. O compromisso para com a justiça pode ser
observado no trecho de uma carta enviada à outra freira, irmã Lourdes,
em maio de 1978, que diz: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem que estar na base de toda a convivência humana.”
Foi assim, colocando a justiça como um pilar da fraternidade que irmã
Cleusa Carolina cumpriu a sua missão como integrante da irmandade
das Missionárias Agostinianas Recoletas. Irmã Cleusa manifestou, em
carta, o desejo de desenvolver um trabalho de alfabetização para adultos
com os povos ribeirinhos, a “pastoral das curvas”, dos Purus, preocupando-se, também, com “os irmãos espalhados pelas estradas”.
A participação ativa na causa indigenista fez com que a freira se
tornasse querida entre os índios, mas, por outro lado, incomodou aqueles que os perseguiam. Irmã Cleusa Carolina foi assassinada no dia 26
de abril de 1985, o seu corpo foi encontrado dois dias depois, nu e escalpelado, com mais de cinquenta chumbos de arma de caça na cabeça e
no tórax, várias costelas quebradas, braço direito decepado e a sua mão
direita nunca foi encontrada. Os ossos do braço direito da irmã Cleusa
Carolina estão depositados na Catedral Metropolitana de Vitória, e tramita,
hoje, no Vaticano, um processo para a sua beatificação.
O martírio da religiosa capixaba faz parte da história de violência
que abrange os conflitos que envolvem terras indígenas e extrativismo e que ainda vitima muitos indígenas. Irmã Cleusa Carolina foi um
exemplo de amor ao próximo e à educação, e foi honrando esse legado e
buscando que a sua memória não caia no esquecimento que a Academia
Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL) tornou-a Patrona da
cadeira de número 24, ocupada hoje pela escritora Beatriz Monjardim F.
Santos Rabello.