Novembro, 2020 - Edição 261
A vida que costumávamos ter
Ontem, fez dois anos sem ela. E ela faz, ainda, aniversário em
mim. Não tive o poder da decisão, sequer pude limpar os ditos incorretos, rasurar alguma explicação.
Tenho o bom e o ruim do silêncio. Fico quieto tempo demais. E
tudo o que é demais perturba. Por que não fiquei, então, quieto naquele
dia?
Eu falei primeiro. Contei o que não era necessário ser contado.
Culpei o desejo que é mais forte do que eu. Quis estabelecer a sinceridade.
Estávamos juntos há algum tempo. Subitamente, achei natural
que outros interesses me emprestassem de mim.
Ela falou nada. Olhou para dentro, querendo entender. Tantos
anos juntos.
E foi assim o nosso entardecer de um inverno há dois anos.
Dormimos sem abraço. E nos levantamos sem calor. Ela se lavou
de tudo o que achou necessário e veio ter comigo.
Foi quando chorou o fim. Ou não. Fiquei imóvel. Enquanto dizia
que nunca mais me enxergaria como antes, fez silêncio. Deitou-se na
cama, em que tantas vezes nos amamos, e lascou perguntas querendo
saber por que eu não a abraçava eternamente, por que eu não espantava, junto com ela, o frio daquele dia e de todos os outros.
Como eu quis ter dado aquele abraço! Mas não dei. Como eu quis
ter dito que era ela a mulher da minha vida! Mas não disse. Fiquei no tal
silêncio perturbador. E, então, ela se abraçou a si mesma e foi se levantando. E é essa a visão que aniversaria em mim.
Quanto aos desejos que tive, se abrandaram. E foram apenas
desejos de um homem inseguro diante do despedir da juventude. Nada
aconteceu além do riso bobo de ser olhado por uma outra muito mais
jovem.
Desarrumada, arrumou as suas coisas. Disse que o resto alguém
organizaria. Eu disse nada. Fiquei olhando e chorando por dentro.
Confesso que imaginava que ela iria mudar de ideia. Confesso que não
sei o que imaginava.
Na primeira noite sem ela, algum alívio. Nos últimos tempos, havia
muita posse, muito ciúme, muita invasão.
A liberdade de alguns dias foi se transformando em cansaços. Eu
tinha a certeza de que ela voltaria com a alegria de sempre, com as festas por bobagens, com as quebras do meu silêncio. Era ela a barulhenta
da casa. Seu jeito de menina bagunçava de um jeito bom os meus dias.
No jardim que plantávamos um no outro, havia tantos bocados de dias
festivos, de viagens, de noites de luares. Havia as nossas imagens, um à
espera do outro. Da janela de onde se via tanta gente, eu a olhava atravessando a rua e voltando para mim. E ríamos a distância. E, então, ela
entrava e nos amávamos como nos inícios.
Dentro de mim, as prisões me quebraram as iniciativas e, assim, se
passaram dois anos.
Soube dela por outros. Que está bem. Que ri das coisas simples e
que pouco fala de mim. Cheguei a encomendar flores e ensaiar uma surpresa. Desisti. Talvez prefira a lembrança do que vivi e do que imaginei.
A distância apaga as feituras e confunde os fatos. Soube por outros
de segredos que ela escondeu. De fazeres errados. De alguma hipocrisia,
quando chorou fidelidade. Mas não é nisso que penso, agora. Penso no
seu cheiro e em alguma esquina em que, quem sabe um dia, nos encontremos novamente.
Que seja na primavera, tempo dos renascimentos.