Novembro, 2020 - Edição 261
A literatura nos diários
É muito comum (se não unânime) em cursos e oficinas de escrita criativa o conselho para que candidatos a escritor mantenham um
diário – vá lá, um caderno de notas – que lhes favoreça registrar fatos,
ideias e impressões. Algumas pessoas é que tornam esses cadernos num
diário, quando uma qualquer consideração de maior monta lhes induza
disposição para um “a mais” de rigorismo e de método.
O fato é que o diário como gênero literário não é tão difundido por
aqui como o é na França, por exemplo. O Journal dos irmãos Goncourt,
traça registros inestimáveis da sua época. É, sem dúvida, um modelo do
gênero.
Mas cabe aqui uma observação: nada obsta a que autores que
se aventuram nesse gênero encarem a tarefa de maneira tão diversa
como podem ser os estilos de cada um. De fato, como se comparar o
estilo reflexivo e pessoal do Diário de Miguel Torga, repleto de registros
impressivos e até líricos, por vezes (muitas vezes) em forma de poema,
ou o Diário de Josué Montelo, uma espécie de produto jornalístico elegante, com o Diário Secreto de Humberto de Campos? Campos, indo
noutra vertente, tecia registros penetrantes e por vezes ácidos dos fatos
e das personagens neles intervenientes. Tanto que o seu diário foi publicado postumamente.
Neste sentido é que o escrito de Campos se aproxima mais do primeiro modelo, o Journal dos Goncourt, que dos outros
dois, os Diários de Torga e de Montelo.
As observações acima não se revestem de maior rigor crítico,
ficam-se pelo campo da observação pessoal. Mas servem para introduzir o tema do diário pessoal, aquele não pensado para publicação, como
motivo de enredo literário. Foi o próprio Montelo, no Reencontro com
meus mestres – poetas e prosadores (ABL, 2003), quem chamou atenção para a diferença entre os registros tomados ao correr da pena, sem
maiores reflexões, e sua eventual versão final, destinada à publicação,
as informações colhidas meditadas e por isso expurgadas de excessos.
Busquemos na Literatura exemplos de ambos os casos. No primeiro, a situação retratada por Machado de Assis no conto Galeria
Póstuma, do Histórias Sem Data (1884): Joaquim Fidélis, distinto e
estimado por todos, falece repentinamente. O sobrinho por ele criado e
favorecido encontra uns cadernos de notas, em que o falecido compunha retratos de figuras públicas e de pessoas próximas, revelando faceta
crítica pouco conhecida de todos.
No segundo, a situação retratada por
Germano Almeida no livro que o fez conhecido (O Testamento do Senhor
Napumoceno da Silva Araújo, 1989), usando registros do testamento em
forma de diário de um rico comerciante de mesmo nome. Interessante
é que, se pelo protagonista de Machado o sobrinho foi poupado, eis que
a pena voraz traçou-lhe retrato favorável, pelo protagonista de Almeida,
o sobrinho que lhe sucederia na direção dos negócios tem uma grande
decepção. Confiram-se ambos.
Gênero literário, assunto a desenvolver num enredo ficcional, diários, por íntimos que são, prestam-se perfeitamente a fazer Literatura.
Essa possibilidade deve ser motivo para que o gênero alcance “plenitude” na “ordem das categorias literárias”, como pugnou Montelo. Ou
assunto mais versado entre os ficcionistas, ouso sugerir.