Outubro, 2020 - Edição 260

Predestinado

Abel passou a incomodar-se com o seu nome quando a professora de catecismo, numa de suas longas preleções, contou a história dos filhos de Adão e Eva. Ele descobriu que o seu homônimo mais famoso (e mais antigo) havia sido assassinado pelo irmão Caim. A turma não perdoou, chamando o colega de “bonzinho”, “fracote”, “bobão”... O menino reagiu, incisivo. Valente, precisou dar um empurrão aqui, um soco ali, para que o assunto se encerrasse, o que aconteceu em poucos dias, naturalmente. Ninguém insistiria nas gozações correndo o risco de levar umas bofetadas. Abel tinha muque suficiente para coibir as gracinhas. O bullying na escola acabou, mas o aluno da Irmã Patrícia rogou aos pais, duas ou três vezes, que mudassem o seu registro civil, sem, no entanto, fazer qualquer referência ao que tanto assombro lhe causara.

Aprendera que não se podia falar assim à toa sobre a Sagrada Escritura, sem solenidade, sem uma circunstância especial. Sua alegação foi outra: não queria mais aquele nominho dissílabo, de menininha, como se se chamasse “Bel”, apelido de Isabel. Os pais acharam a solicitação engraçada e não deram muita bola. A vida seguiu. Os dias foram se sobrepondo uns aos outros, indiferentes à memória desagradável do conto bíblico que insistia, teimosa, em habitar um cantinho da mente de nosso personagem. Dali não saía por nada. Às vezes, ganhava uma vozinha irritante, que lhe provocava: “fraquinho”, “bobinho”, “cuidado: a vida é perigosa”...

O problema cresceu mesmo foi com a gravidez inesperada da mãe de Abel, nove anos depois do nascimento do primogênito. Num primeiro momento, surpreendido, o casal nem sabia o que fazer. A família funcionava bem em trio. Foi preciso rearrumar as perspectivas parao futuro, refazer alguns projetos, o orçamento, desenhar de novo certos sonhos... até que tudo ficasse no jeito para receber o bebê. Na noite em que seus pais contaram a ele que, em seis meses, ganharia um “amiguinho”, o garoto desesperou-se, como se confirmasse uma previsão funesta, de que não tinha forças para escapar. Chorando, suplicava para que não deixassem o irmãozinho nascer, sem palavras para explicar porquê. Apenas tremia. Por noites seguidas, acordava em pesadelo.

Perplexos e sem entender direito o comportamento do filho, Sirlene e Adauto creditaram a emoção de Abel ao que todos os psicólogos sempre falavam: “quando vem o segundo, o mais velho perde o trono, a exclusividade, e reage”... A situação ficou mais tensa e grave quando Abel tentou atingir a barriga da mãe com um chute, no que foi impedido pelo pai, hábil e rápido em conter a sua fúria. O parente psiquiatra foi chamado a opinar e logo receitou uma caixinha de alguma química que dopou Abel pelo tempo necessário para que ele não causasse mais transtornos. Até o final, o garoto nunca mais falou sobre o tema, como se desconhecesse por completo o ventre enorme ao seu lado na mesa do jantar, os enjoos, a vontade de degustar pratos exóticos, as idas ao ginecologista, as conversas de todos os familiares ao redor, a ansiedade dos avós...

Martin nasceu forte e saudável, de parto normal, animado para a vida, numa manhã ensolarada de domingo, como pedem as histórias felizes. Abel permaneceu no apartamento, discretamente vigiado pelo avô paterno. Quando a notícia lhe foi dada, mais que depressa trancou-se no banheiro, alegando necessidades, sem que o velho homem tivesse como impedi-lo. E de lá não saiu. A porta teve que ser arrombada. Ao lado do corpo, as cartelas vazias, o estoque das caixinhas completamente zerado.

Por Rogério Faria Tavares - jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras