Outubro, 2020 - Edição 260
Entrevista com a velha professora
A jornalista chegou cedo, com o bloco de anotações, a caneta, o
celular. Eu já a esperava entre meus livros e lembranças. Ela entrou e disse:
– Fui sua aluna. Éramos tão jovens, despreparados...
– Perdemos a juventude. Hoje tenho certeza de que nada sei.
Descobri minha progressiva ignorância.
Ela se sentiu um pouco constrangida:
– A senhora me marcou, inspirou-me. Suas aulas. O jeito como
conduzia nossos sonhos. Quando levei aquela televisão de papelão e
apresentei o jornal de notícias, falou que eu poderia ser jornalista um dia
e... acreditei.
– Você tinha talento. Era prata na mina. Diamante bruto. Que bom
que lhe dei asas! Fui pedra de amolar para muita gente, como explicou
o Horácio da Roma Antiga, em sua Arte Póetica: não cortava, mas servia
para afiar.
– Nesse dia do professor, pensa que poderia ter escolhido outro
ofício?
– Impossível. Poeta e professora. O meu interesse pelos livros, pelos
escritores, transformou-se numa vocação de magistério. Sou da estirpe de
poetas educadoras, que se dedicaram ao ensino. Como a carioca Cecília
Meireles, criadora da primeira Biblioteca Infantil, em Botafogo. A goiana
Cora Coralina, professora de resistência, com sua postura rude, pedagógica, sábia. Ela que escreveu um poema em homenagem àquela que a
alfabetizou, a mestra Silvina. E Gabriela Mistral, a poeta chilena, que me
encantou com sua oração, em que pedia ao Divino Mestre que lhe desse
o ser mãe mais dos que as mães, para poder amar e defender como elas
o que não era carne de sua carne. Tenho em mente uma escola que foi a
minha própria vida. Um lugar para o despertar.
Passa os olhos pelas estantes:
– O que está lendo?
– Reli um livro de contos do Machado de Assis, sempre ele. Nosso
maior escritor. Gosto do conto “Cantiga de Esponsais”. É a história de
um velho professor de música, o Mestre Romão Pires. Passa-se no ano
de 1813, na Igreja do Carmo, onde acontece uma missa cantada. Mestre
Romão rege a orquestra com paixão, devoção mesmo. Depois volta para
sua casa humilde, sombria. Tem um sonho secreto: gostaria de ser um
compositor, de comunicar seu mundo interior, pois trazia dentro de si
tantas óperas e harmonias. Sua funda tristeza era não conseguir compor.
Ficava horas interrogando inutilmente as teclas do cravo. Se pudesse acabar ao menos uma peça, um cântico conjugal que começara a compor
três dias depois de casado. Sua mulher tinha 21 anos e morreu aos 23.
Amavam-se. Quando ela partiu, fixou num papel algumas notas musicais,
a sensação de sua felicidade extinta. Resolveu então terminar a música.
Viu pela janela dois casadinhos de mãos dadas. A moça começou a cantarolar a melodia que ele sonhara. Nesse momento, abaixou a cabeça e
expirou.
– Lindo e triste!
– A melancolia é a porta da beleza. Há vocações que têm língua e as
que não têm. Dei aulas para escrever e escrevi sempre. Coisas que fizeram
sentido para mim.
– E seu futuro?
– Resta-me o agora. Melhor não me apegar a ilusões. Tudo entardece.
– É feliz?
– Não creio em felicidade. Tenho alegria, força, bom ânimo e escrevo.
– E os amigos?
– Há os que foram meus alunos como você. A moça de uma antiga
biblioteca que me atende com carinho, cartas e mensagens que insistem
em chegar pelo correio. O carteiro é o amigo do poeta, já dizia Neruda.
– Sua saúde?
– Não posso tomar café depois das cinco, nem carregar peso. Puxo
um pouco a perna esquerda.
– Vejo que lá fora há um pequeno jardim com orquídeas no tronco
da amoreira. Costuma ficar lá?
– Gosto de observar os astros.
– O que está escrevendo no momento?
– Poemas. O livro se chamará Luas de Saturno e o dedicarei a
Saturno, o titã do tempo e ao planeta. Por enquanto, está maturando na
gaveta.
Minha aluna jornalista se levantou. Abraçamo-nos. Eu a levei até o
jardim para a despedida. Os anéis de Saturno já brilhavam àquela hora.