Outubro, 2020 - Edição 260
Aos mestres Aos mestres
O lar galego nutriu-me com pão e valores. Abastecida de amor, fui
entregue ao Colégio Santo Amaro, de professoras alemãs, para cumprir
meu destino educacional.
Sob a custódia das madres beneditinas, fui introduzida aos mistérios da educação formal, estaria à salvo da vida à deriva. Aos poucos
escalaria os degraus do conhecimento. À sombra dos livros e da escrita.
Seria um espírito universal. Enfim o que me faltava.
As mestras eram rigorosas, mas estimularam minha percepção de
mundo, enquanto me ensinavam o uso simbólico do lápis, do caderno,
do quadro-negro, da alquimia da palavra. E davam ênfase aos livros que
alicerçavam os saberes transmitidos.
Madre Elmara Bauer, que ensinava latim e grego, respondia pela
classe, portanto auscultava quem éramos, nosso agir. Dizia-se ser uma
nobre austríaca que ingressara na ordem beneditina já com sólida cultura. Ao intuir eu a nostalgia que lhe suscitava a arte cênica, a que não
tinha acesso, tornei-me sua amiga e seu alter ego. Supria-a com detalhes
o que eu assistia nos teatros. Emprestei-lhe meus olhos e meu arrebato
teatral. Em troca, madre Elmara intensificava meu fervor literário. E,
nos intervalos das aulas, ajudava-me a interpretar Corneille, Racine, a
distinguir a essência lírica de Ronsard e o grupo da La Pléiade. Ainda a
essência da poesia medieval que pousava no Roman de la Rose.
As madres respondiam por uma pedagogia clássica pautada pelos
ditames civilizatórios. Sempre em consonância com paradigmas embutidos em sua formação religiosa. Mas sem nos privar de um ensino
capaz de fertilizar o intelecto, de recrudescer a leitura em casa. Uma
didática propícia ao entendimento da complexidade humana.
Cingidas elas a seus códigos, jamais senti que tolhiam meus movimentos ao rechaçar alguns dos seus dogmas. Como se confiassem elas
nas irradiações da minha humanidade. Também eu valorizava quando
lançavam setas à minha mente com o intuito de acatar a vertigem que
os pensamentos produziam ao fundirem-se a esmo. Assim desvendando o que estivera velado.
Havia que sistematizar o conhecimento, estimar o empenho intelectual que sempre deram existência às obras imortais. Para tanto, era
mister superar obstáculos sem temer reveses.
Com os recursos curriculares do colégio, parecia-me que as
madres, em nome da estima que me tinham, amalgamavam a massa
dispersa dos meus saberes para erguer com eles a casa que no futuro
abrigasse minha criação literária. E queriam poupar-me das dores que
sempre sofreram as criaturas humanas à mercê das eclosões históricas
que solaparam as utopias.
No convívio escolar, eu rastreava a inventiva humana e os labirintos da memória. Ambas funções dando guarida ao enredo da própria
família, que, ao cruzar o Atlântico, fez-me brasileira. E que, em parceria
com as mestras, legou-me a noção da aprendizagem, da perseverança,
que fortaleceriam. Sem me descuidar da área dos sentidos e das emoções. E ocupar assim um lugar propício à minha alma. Ao verbo com o
qual pensaria a vida.
Sou grata a todos os mestres que me escolheram para dar vida aos
seus sonhos. Para ser o que eles tinham de melhor. Prezo tanto o humanismo que generosamente se desprendia deles a cada lição. Guardo
na vida e no ofício de escritora a marca das suas presenças. O quanto
formalizaram minha cidadania. Sei que os efeitos do ensino escolar são
visíveis na grandeza de uma nação. E que a educação esclarece definitivamente quem somos.