Setembro, 2020 - Edição 259

Uma canção para Diadorim

“Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver”. Assim começa Travessia, de Fernando Brant e Milton Nascimento, que dispensam apresentação. E assim começa o sofrimento de Riobaldo, personagem-narrador de Grande sertão: veredas, (1956), de Guimarães Rosa, autor que também dispensa apresentação – e que morreu em 1967, mesmo ano em que nasceu a famosa canção.

No meio da guerra dos jagunços, que liderava do alto de um sobrado no arraial do Paredão, Riobaldo atirava e comandava o seu grupo. Mas não acreditou no que viu: após o silêncio das balas, Diadorim avançava sozinho ao encontro do inimigo Hermógenes, motivo da guerra, alvo de sua vingança, pois assassinara o seu pai, Joca Ramiro. Hermógenes também seguia destemido ao encontro de Diadorim. O Diabo no meio da rua, no meio do redemunho... era o único pensamento que acudia Riobaldo. E ele não pôde acreditar no que via. Perdeu o fôlego. Ficou paralisado. Olha a faca! Era como ver Davi indo ao encontro de Golias, ou São Jorge enfrentando o dragão: O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, para encurralar comprido... Tiraram a minha voz, disse Riobaldo. Morre Diadorim.

É sobre esse momento que a canção “Travessia” parece falar, do clímax desse romance, obra-prima de nossa literatura, momento de tensão máxima, de drama ou tragédia, que a canção tão bem retrata, coincidentemente ou não. Nesse momento profundo, algo se rompeu na alma de Riobaldo, se desprendeu e se perdeu para sempre. Fez-se memória da dor. Riobaldo que amou Diadorim de puro amor, mal encoberto de amizade. Diadorim que tinha um segredo a revelar a Riobaldo:... repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...

Temos, dessa maneira, a morte de Diadorim: “Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver”. Era uma noite de toda fundura, premonizou Riobaldo. “Forte eu sou mas não tem jeito / Hoje tenho que chorar”. E, ao verDiadorim morto, agora revelado linda moça, Deodorina, Riobaldo chorou rios de lágrimas, se desesperou. Desmaiou. Fez uma viagem simbólica da vida à morte. Uma travessia: Eu despertei de todo – como no instante em que o trovão não acabou de rolar até ao fundo, e se sabe que caiu o raio... Diadorim tinha morrido – milvezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram.

Recobra, no entanto, os sentidos e chora: Eu descuidei. Eu deixei minhas lágrimas virem (...) “Solto a voz nas estradas / Já não quero parar”, diz a canção. E Riobaldo gritou, chamou Diadorim: Diadorim, Diadorim, Oh, ah, meus buritizais levados de verdes..., Burití, do ouro da flor... Segue a canção: “Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar.” Viu que Diadorim era o corpo de uma mulher moça perfeita. (...) Uivei. Diadorim! E Diadorim morreu com o seu segredo, só agora revelado, mas pressentido por Riobaldo (...) nas curvas da boca, em rir dos olhos, na fina cintura.

Conta, então, Riobaldo, a sua vida a um interlocutor, o moço da cidade. “Minha casa não é minha/ E nem é meu este lugar”: Riobaldo estava em casa alheia, longe do seu lar. “Estou só e não resisto / Muito tenho pra falar.” Viuse em dolorosa solidão depois de perder o amigo, o amor secreto de sua vida. Travo de tanto segredo. Diadorim que foi “Sonho feito de brisa” que o “Vento vem terminar” (morte), em meio a um “caminho de pedra”, de luta, de vida difícil de Riobaldo, doravante sem sonhos: “Como posso sonhar”, pergunta; “Vou fechar o meu pranto / Vou querer me matar”; “Vou seguindo pela vida / Me esquecendo de você”; e Riobaldo, após se recuperar do ferimento da luta, depois de meses de isolamento, de falta de vontade de viver, recebe a visita de Otacília, moça bonita, a quem queria bem e com quem viria a se casar. “Eu não quero mais a morte / Tenho muito que viver/ Vou querer amar de novo / E se não der não vou sofrer.” Decide, então, casar-se com Otacília e tentar ser feliz. Mas sem ilusão: “Já não sonho, hoje faço / Com o meu braço o meu viver.” Riobaldo casa-se e torna-se barranqueiro sossegado no São Francisco. Cumprindo dever.

Diadorim foi amor turbilhão, cachoeira; Otacília foi remanso do rio na vereda; Diadorim foi a violência da paixão, cavalo selvagem em corrida doida, desenfreada, nos campos dos Gerais. Urucuia, rio do amor de Riobaldo. Otacília foi o rio calmo, silencioso, tocando leve e suave no barranco do rio. E foi porto seguro. Travessia.



Por Vera Lúcia Oliveira - professora e membro da Academia de Letras do Brasil.