Setembro, 2020 - Edição 259

Comadre Jacira – um microconto para a quarentena

Comadre Jacira está desolada. Por conta da quarentena, há três meses não confessa a padre Duílio – como faz há quarenta anos, disciplinada e rigorosa – as terríveis faltas contra Deus e a Igreja que tem cometido em sua rotina de senhora pacata e sozinha, agora mais que nunca. Se fosse só desolada... Está angustiada, quase no limite. Não tolera conviver com os pensamentos e as imagens torpes que lhe atormentam a mente e as carnes, chegando, às vezes, a desgovernar suas mãos, habitualmente contidas, obedientes. A única forma de purgá-los, de bani-los de seu convívio, mesmo que temporariamente, é a que sempre usou, com sucesso garantido: a narração minuciosa dos pecados cometidos por sua imaginação ao velho senhor, hoje bastante idoso e praticamente surdo, como toda a gente comenta. Uma corrente de eletricidade parece percorrer a espinha de Jacira nos momentos mais excitantes dos casos que não tem vergonha de revelar ao pretenso ouvinte.

É quando fica ereta. Caprichando nos detalhes – os olhinhos brilhando, a boca úmida, a saliva abundando – fala como se as cenas houvessem sido, de fato, vividas, e não apenas sonhadas. Chega ao final levemente cansada, a respiração acelerada, o peito arfando. E espera, com prazer, a prescrição da penitência. Nas vezes em que padre Duílio se esquece das punições, a Comadre faz questão de relembrá-lo: “E o que terei que fazer para que o Pai Eterno aceite o meu arrependimento?” Quando o seu interlocutor lhe parece suave, displicente ou negligente, Jacira se sente ofendida, até traída, como se suas infrações não importassem ou fossem tolas, inofensivas, insignificantes. O senhor não entendeu o que lhe disse, padre? Se quiser, repito tudo, tim-tim por tim-tim.”

E se Comadre Jacira rompesse o isolamento social e fosse até a Matriz, valentona, desafiando as autoridades? Atingiria o seu objetivo? Por recomendação médica, padre Duílio está impedido de receber os fiéis. Seu médico precisou gritar no seu ouvido: “O senhor é do grupo de risco. Gru-po de ris-co. Não brinque com esse vírus, padre Duílio, por favor.” As missas foram suspensas. Os templos estão fechados até que as regras de flexibilização permitam a sua reabertura. Josino, um seminarista bem jovem e muito à vontade com as tecnologias digitais, se dispõe a apresentar a padre Duílio as maravilhas da Internet e das redes sociais.

“Se o senhor quiser, posso organizar as celebrações pelo zoom ou por Skype. O que acha da ideia?” O velho homem chega a franzir o cenho, o raciocínio embaralhado. Depois, recupera a tranquilidade: “Pedirei a padre Davi que reze com os paroquianos pelo computador, Josino. Eles vão gostar. E padre Davi também, eu tenho certeza.” O menino se levanta, pronto para sair do quarto. “Só tem uma caridade de que não posso abrir mão, Josino. Sob o risco de matar alguém. Matar mesmo – e falo sem exagero.

Amparada por Josino, escondida pelo casaco e pelo capuz, Comadre Jacira está de máscara e luvas. Mantém a cabeça baixa, como se não pudesse ser vista. Entra pela porta dos fundos da casa de padre Duílio, no horário mais discreto, quando todos estão fazendo a sesta, encerrados em seus aposentos. O jovem seminarista abre a porta do quarto, onde o velho sacerdote já está posicionado, numa cadeira em frente a outra. “Sou todo ouvidos, Jacira. Todo ouvidos.”

Por Rogério Faria Tavares - jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras.