Setembro, 2020 - Edição 259
Amália, tudo o que há dentro de nós
Palavra, a palavra Amália desperta, umas vezes, a euforia e o deslumbramento da festa. O rosto alegre na cidade triste. Outras vezes, essa mesma voz
coloca-nos perante estados profundos de angústia e de tristeza que nos fazem
descer aos abismos da fatalidade e desespero.
Tudo aconteceu e com poetas tão diferentes das mais diversas épocas
e tendências da língua portuguesa. E em relação ao Brasil e aos seus poetas?
Gostava muito de Cecília Meireles, de Vinicius e de Manuel Bandeira. (Quando
Vinicius esteve em Portugal, em 1970, foi apoteoticamente recebido em casa
de Amália.) Uma vez levei-lhe uma antologia de Drummond. Dias depois, verifiquei que não era dos seus poetas. Tambem procurei que lesse a Quaderna de
João Cabral. A reação foi pior. E recordo-me, como se fosse hoje: “Traga-me o
Castro Alves. Não sei se sabe, interpretei o papel de Eugenia Camara, no filme
Vendaval Maravilhoso. Levei-lhe o Castro Alves, o Juca Mulato, de Menotti del
Pichia (com quem tive ótimas relações e ofereceu-me um autorretrato e uma
interpretação do Juca!) e, também, uma antologia de Bilac.
Dias depois, telefonou-me para jantar. “Mas venha só. Não quero mais
ninguém.” Olhou-me e começou a ler: “olha (direis) ouvir estrelas” (…) e prosseguiu “e eu vos direi: amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido/
Capaz de ouvir e de entender estrelas”. Ao terminar, tinha a voz embargada. E
um nó na garganta. Também eu.
Raízes judaicas
O centenário de Amália começou este ano. Foi a 1 de julho, embora a certidão de nascimento registre 23 de Julho. Nasceu, por acaso, em Lisboa, na rua
Martim Vaz, na Mouraria. A família era da Beira Baixa – o pai, Albertino de Jesus
Rodrigues, era sapateiro, natural de Castelo Branco; a mãe, Lucinda da Piedade
Romão, doméstica, era do Fundão.
Desde épocas muito remotas, o Fundão é uma das regiões de Portugal de
maior concentração de Judeus e de Cristãos Novos. À semelhança de Fernando
Pessoa (que o confessou e escreveu, com pormenores genológicos, num texto
acerca dos seus antepassados próximos), Amália Rodrigues tem raízes judaicas
na Beira Baixa. Belmonte é uma das terras portuguesas onde, após a Inquisição
e até ao 25 de Abril, a população, na sua esmagadora maioria, respeitou as tradições e, simultaneamente, praticou na clandestinidade, o culto. Tem, atualmente,
sinagoga em pleno funcionamento, e um museu que faz afluir judeus de todo o
mundo.
Os pais de Amália chegaram pobres a Lisboa em busca de melhores
condições de vida e, seis anos depois, em 1926, mudaram-se para o Fundão e
continuaram pobres. Amália ficou, desde os seis anos, com os avós maternos,
em Alcântara. Fez tarde a instrução primária e teve uma infância e adolescência
difíceis.
Já está a ser comemorado o centenário do nascimento de Amália. Mesmo
nas circunstâncias atuais resultantes da expansão do Covid-19, pouco favoráveis para espetáculos públicos e outras manifestações culturais, traz à memória
factos e acontecimentos que preencheram uma vida intensamente vivida.
30 Anos de amizade
Sendo Amália uma mulher que queria ser do povo, rodeou-se de poetas, de escritores, de músicos e de artistas plásticos que sempre acolheu com
afetuosa hospitalidade. A relação com o mundo social decorreu dos anos 1940
ao princípio dos anos 1960, através do ator Erico Braga. Agente publicitário de
Amália, também organizava as promoções do Diário de Notícias. Por indicação do diretor do jornal, Augusto de Castro, colaborei, como repórter, durante
vários anos, em algumas dessas iniciativas. Assim, a partir de 1961, através de
Erico Braga, comecei a ser recebido em casa de Amália. Até á morte a 6 de outubro de 1999.
Também David Mourão Ferreira atraiu, outros poetas, escritores e outros
intelectuais, para casa de Amália. O mesmo aconteceu com Alain Oulman.
Depois de Frederico Valério, musicou as letras e também selecionou para
Amália poetas contemporâneos e poetas clássicos como Camões. Judeu de
origem francesa e portuguesa, Alain Oulman, nascido em Portugal, tornou-se,
desde 1961, amigo e colaborador de Amália. Perseguido e preso pela polícia
política de Salazar, Alain Oulman exilou-se em Paris. Continuou a dedicar-se
à música e, ao mesmo tempo, a trabalhar com um tio, proprietário da editora Calmam Levy. Será,
em 1972, o editor do livro de Mario Soares Le Portugal Baillonné, em português, com o título Portugal Amordaçado.
Rua de São Bento, 193
A casa que Amália comprou, em 1955 – um edifício pós pombalino na rua
de São Bento, número 193 – onde viveu mais de 40 anos, era ela. Ela própria,
com todas as euforias e depressões que se alternavam no cotidiano. Também
eram os amigos e, evidentemente, as pessoas da família. O resto era a paisagem
que enquadrava essa extraordinária personalidade – os painéis de azulejos do
século XVIII, lindíssimos e autênticos.
Flores, muitas flores, renovadas todos os dias. O piano de cauda, com
uma guitarra em cima; alguns móveis, alguns quadros, entre ao quais o inevitável retrato mundano de Eduardo Malta. Falta, ainda, o busto de Amália do
escultor Joaquim Valente, que lhe fixou a pose, a atitude, os olhos próximos e
distantes. A imagem de marca da consagração nas casas de Fado em Lisboa,
que a projetou em Portugal e, poucos anos depois, estendeu-se às capitais da
Europa e das Américas, sem perder os vínculos com Lisboa. Talvez por isso,
Aquilino situou-a entre os mitos de Lisboa, ao falar da “cidade maravilhosa
de Ulisses e de Amália”. Anos mais tarde – quem o diria? – ambos ficaram no
Panteão Nacional.
Brasil, tão próximo
A consagração de Amália nas casas de Fado, em Lisboa, foi muito rápida.
Estreou em 1956, em Paris, no Olympia. Os êxitos multiplicaram-se. O prestígio
alargou-se às Américas, à India e ao Japão. O Brasil ocupou, desde os anos 1940,
um lugar muito especial. Ficaram memoráveis, inúmeros espetáculos: Canção
Popular no Rio (1966), protagonista do Canecão no Rio (1972); a última intervenção em 1991. Foi no Rio de Janeiro que, em 1961, casou com o engenheiro
Cezar Seabra que, até falecer, em 1997, foi o companheiro inseparável.
Guilherme de Figueiredo teceu-lhe os maiores louvores. Também Carlos
de Lacerda. E Assis Chateaubriand a enalteceu: “na sua arte do canto, o demônio
da sinceridade” ( …) que “é o protótipo do que o árabe deixou de mais sedimentado da sua ocupação na Península”. Na França, André Maurrois sintetizou:
“Amália é um fenómeno só comparável a Nijinssky.”
Apesar de todas as andanças pelo mundo, Amália manteve sempre fortes
vínculos com Lisboa. Talvez por isso, Aquilino, num dos seus livros, situou-
-a entre os mitos de Lisboa, ao falar da “cidade maravilhosa de Ulisses e de
Amália”. Anos mais tarde – quem o diria? – ambos ficaram no Panteão Nacional.
Projeto lusofonia
Na sequência da fundação, da CPLP (Comunidade dos Países da Língua
Portuguesa), José Pracana concebeu um projeto para impulsionar a lusofonia.
Era um espetáculo com Amália – apenas a voz e apenas a sua presença emblemática – para difundir, através do lugar simbólico da ilha do Corvo, a língua portuguesa para todo o mundo lusófono, com incidência nos países da emigração.
Para o projeto inicial que se malogrou e que tive a honra de colaborar,
a pedido de ambos, Amália escolheu a “Décima de Sílvio e Silvana”, poema de
Vitorino Nemésio, do livro Festa Redonda, que a emocionou profundamente.
Todavia, Alain Oulman musicava, na altura, versos de Cecília Meireles e não
pensava noutra coisa. Amália não desistiu do poema e pediu, entretanto, a colaboração musical do seu guitarrista, Carlos Gonçalves, aguardando, para logo
que possível, os arranjos de Alain Oulman ou, se ele entendesse, uma versão
apenas da sua autoria.
Retrato ou autoretrato
Decorrido pouco tempo, em março de 1990, falecia Alain Oulman, em
Paris. Amália resolveu, então, concluir a interpretação e música e fazer a gravação da “Décima de Sílvio e Silvana”. Inexplicavelmente continua numa cassete.
Sem a edição que se impõe.
Na “Décima de Sílvio e Silvana”, Amália transfigurava-se. A voz, logo que
rompia o silêncio, conjugava o real e o imaginário. Era um suceder de espanto
a espanto: O seu pente é um triste cardo,/a sua vida é chorar (...)/Tem sinais de
anjo na cara/e de cabrinha no pé !(...)/ Retraça cachinhos de uvas./A terra dá flores
de sangue,/O céu agulhas de prata;/Uma sereia escondida / Canta, canta que se
mata:/ “Toca, flauta! E tu, Silvana, /Queima o teu pente dorido… /Sirva-te o mar
de cabelo!” /Sílvio – navio perdido…)
João David Pinto Correia, num ensaio sobre “Voz e povo na poesia de
Vitorino Nemésio”, identificou nas estrofes da “Décima” (afinal 24 quadras) a
dimensão lendária de uma Sereia Melusina com sinais de Dama Pé de Cabra,
mas transformada em Bela Infanta. Para além do que João David Pinto Correia
salientou e de tudo quando há de raiz e de sentimento açoriano, Amália – pude
várias vezes confirmá-lo – revia-se na “Décima de Sílvio e Silvana”. Era, afinal, o
seu retrato, ou um dos retratos que desejava ter na posteridade.