Setembro, 2020 - Edição 259
A sexagenária poesia de Carlos Nejar
Num tempo de enturvadas incertezas, e que nos parece abrir novos caminhos para o precipício, comemorar um evento literário pode não ter a repercussão de um foguetório de gols de final de campeonato; nem o estrondoso delírio
das massas ovacionando os endeusados astros da música sertaneja; mas certamente engalana o âmago de nossas almas, tão ávidas da flor desses mistérios
que embalsamam a criação poética.
Encontrar-se com a poesia de Carlos Nejar, este profícuo “Servo da
Palavra”, é preciso parcimônia espiritual, amar o fulgor estético, e ter, sobretudo,
leitura meditada, de fino bom gosto, para adentrar o poderosíssimo imaginário
de suas metáforas. Pois este gaúcho, de enorme desadorno telúrico, lá dos intermúndios dos pampas, chove poesia e é como um dique arrombado pela força
das enchentes. Do contrário, não assoalhava tamanho repertório bibliográfico,
de cuja lavra literária ultrapassa hoje a robusta soma de mais de cinquenta
livros publicados, entre ensaio, crítica, romance, novela e poesia, sobretudo
poesia, sua tromba d’água.
No último dia 17 de julho, o acadêmico e laureado poeta Carlos Nejar
(ele é da Academia Brasileira de Letras), inteirou sessenta anos de vida literária
dedicada ininterruptamente à poesia. O vate e o sua verve homérica de criar;
perseguidor indômito do impossível, cuja luz da criação ainda arde nas mãos
do poeta.
Há quarenta e cinco anos atrás, quando no outono de 1975, eu retornava
da minha clandestinidade política, em Buenos Aires, e vi, pela primeira vez, o
poeta Carlos Nejar, descendo de seu automóvel num estacionamento da rodoviária de Porto Alegre. Ele fora me buscar, todo galhardo e gentil comigo. E, de
chofre, me ofereceu estalagem. Selava-se ali, e então, o vínculo afetivo, existencial e literário, de uma bela e fecunda amizade, frutificada, às fartas, por uma
torrente de inefáveis alegrias.
Um dia, em uma de suas inumeráveis dedicatórias a mim inscritas, ele
sapecou o improviso: “Ao poeta-irmão – Gabriel Nascente, nascendo adiante,
cujo sapato tem sola de estrela e o verso, correnteza na mão. /Com afeto, Carlos
Nejar.” Os anos indo se foram, feito farinha de vidro que o vento espalha. Em
muitos retângulos e ângulos da vida, somos parecidos. Irmãos zodiacais também somos. É Capricorniano. Eu, também de janeiro, aquariano. Ambos, com
cheiro de serragens no sangue; tanto ele quanto eu nascemos filhos de marceneiros e do verão. E herdamos a enxó da poesia carpinteira, que rasga madeira
e enverniza móveis com metáforas do céu.
Ficcionista de iluminados voos pelos gêneros dos romances e das novelas.
Renascentista. Estoico, popular e povo. Com espumas de correntezas para escrever, e flagrar as irradiações do espírito em torno da palavra. Historiador e crítico,
tradutor, o bardo (e sua Árvore do mundo, pampaneira), desgalhada em paixões
de fogo pela poesia, que, há sessenta anos de Sélesis – seu avant-premiére literário de 1960 – desde quando a palavra ia rasgando a nudez de tua alma.
Deste meu frugal vínculo de amizade atada a ele – o Nejar homérico
dos pampas –, muito aprendi, muito lhe devo, muito ganhei. Às vezes, quando
encaramujado entre os negrumes de uma delgada tristeza, se me apresenta um
tanto choroso e quérule, amargurado, disto eu sei, e confesso: o enorme poeta
da Jovem eternidade é divinamente atroz na cachoeira de teu viver, robusto de
sonhos e alegrias, ombreado aos querubins de teu engenhoso ofício de acender
relâmpagos e amar o amor que é o seu “violoncelo/tocado para dentro”.
Pelos seus sessenta anos de literatura consagrada ao miraculoso lume do
ofício poético, eu, do lado de cá das barranqueiras do rio Paranaíba, em minha
tosca Sala Albert Camus, entoarei o meu júbilo de retumbante prolfaças ao divino poeta e irmão de âmago em luz.