Agosto, 2020 - Edição 258

Quincasblog, bom a partir do nome...

Quincasblog, bom a partir do nome...

Há escritores brasileiros que, não bastasse o renome na literatura, mostram-se grandes, também, no exercício da carreira diplomática: Guimarães Rosa, Gilberto Amado, Vinicius de Moraes, José Guilherme Merquior, Antonio Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Dário de Castro Alves, Alberto da Costa e Silva, Sérgio Paulo Rouanet, João Almino, Felipe Fortuna... A essa nobre linhagem, acrescente-se o escritor, cineasta, ator, diretor de teatro, animador cultural e diplomata Lauro Moreira, senhor de talentos múltiplos que dele fazem um brilhante intelectual, na mais nobre acepção do termo. As muitas histórias que acumulou em vida de tamanha riqueza são narradas no livro Quincasblog: meus encontros (São Carlos: Art Point, 2019).

A publicação reúne textos escritos para o canal da internet que o autor mantém desde 2012, engenhosamente intitulado Quincasblog, alusão ao Machado de Assis por cuja obra encantou-se na adolescência. Propõe-se o blog a “falar de tudo um pouco”, e assim é feito: as postagens vão do teatro à literatura, do futebol à música, paixões da vida inteira, apresentadas ao leitor à medida que se contam as memórias do diplomata. Foram 45 anos de admiráveis serviços prestados ao Itamaraty, em Buenos Aires, Washington, Genebra, Barcelona, Rabat e Lisboa, além das funções que exerceu em Brasília. Teve, ao longo de todo esse tempo, o privilégio de conviver com Clarice Lispector, Manuel Bandeira (seus padrinhos de casamento, com a poetisa Marly de Oliveira), Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Aurélio Buarque de Holanda, a que se juntam colegas de profissão como Antonio Houaiss, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto.

Ao poeta de Morte e Vida Severina, então embaixador do Brasil em Tegucigalpa, perguntei o que fazia para divulgar nossa cultura no exterior. Respondeu-me que nada, pois não havia dinheiro para tanto. Diferentemente do colega de Pernambuco, Lauro Moreira obrou milagres nos países por onde passou. Em Barcelona, propôs aos dirigentes de um colégio chamado Brasil a realização de uma semana cultural brasileira e um campeonato de futebol entre os alunos, cuja taça a equipe campeã receberia de ninguém menos do que Romário, ídolo dos torcedores do Barcelona. Fosse pouco, fundou na cidade o Clube da Música Brasileira e o grupo Som Brasil (“Somos Brasil”, em catalão), semente do Solo Brasil, que já se apresentou em vinte países de quatro continentes. Façanhas que me lembram a piada em que o recruta explica ao sargento a sujeira do quartel: “é porque está faltando vassoura...” E a resposta: “se vire, soldado, varrer com vassoura é fácil!” Pois é, Lauro Moreira varre sem vassoura...

Com a discrição e a elegância que mantém na aposentadoria, o diplomata pode revelar, hoje, os contratempos que marcaram a diplomação da turma a que pertenceu no Instituto Rio Branco – em 1964, ano do golpe militar. Primeiramente, a escolha do paraninfo, Alceu Amoroso Lima, intelectual famoso que se distinguia na oposição aos novos ocupantes do poder. Pressionados, tiveram os formandos de eleger figura menos indigesta para o governo, o também ilustre embaixador Otávio Dias Carneiro, com o que o orador da turma, Lauro Moreira, apresenta ao diretor do Instituto Rio Branco o discurso que preparara. Ao velho diplomata, o texto parecia “muito profundo, e, portanto, não apropriado para uma cerimônia de amenidades, como deve ser uma formatura”. E sugeriu: “se o senhor quiser, poderá até apresentá-lo como uma conferência aos alunos do Rio Branco...” Preocupava-o que, no dia seguinte ao da formatura, o Correio da Manhã, jornal importante e opositor ferrenho dos generais, extraísse uma frase do contexto e estampasse algo como “Jovem diplomata dá aula ao Presidente da República, mostrando que democracia social é o caminho para o Brasil”.

Meses depois, o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras, embaixador Guimarães Rosa, chama o orador da turma ao gabinete e pede que lhe permita ler o discurso. Por sabê-lo politicamente “um tanto conservador”, Lauro só respira aliviado quando ouve: “Li o seu discurso. É ma-ra-vi-lho-so! Ninguém de boa-fé pode ser contra ele.” Consolidavase, assim, uma amizade que nascera quando, ator que prometia, coubera ao futuro diplomata fazer Lalino na peça A Volta do Marido Pródigo, adaptação do conto de Guimarães Rosa. Depois de assistir a um ensaio, declarou-lhe o gênio do Grande Sertão: “Achei ótimo! E quer saber de uma coisa? O seu Lalino está melhor do que o meu!”

A conclusão da história é que a turma de 1964 nunca se formou, e, lembra o memorialista, “por longos anos não mais houve no Itamaraty a realização de cerimônia naqueles moldes tradicionais, com intervenção de paraninfo e orador de turma, resumindo-se o evento apenas a um almoço com a presença do Presidente da República e um discurso sobre política externa pronunciado pelo Chanceler”.

Em 1969, teria Lauro Moreira outra má experiência com a Ditadura: cônsul adjunto do Brasil em Buenos Aires, participou de um curso promovido por instituição ligada ao Banco Interamericano de Desenvolvimento, ao fim do qual propôs a colegas estrangeiros que visitassem nosso país. Em Porto Alegre, militares procederam à revista da bagagem de mão de todo o grupo, quando um professor colombiano teve apreendida edição em espanhol de um livro de Celso Furtado, sob o argumento de que era obra “definitivamente subversiva”... Em São Paulo, foram conduzidos à sala em que um coronel cobrou com insolência, do diplomata brasileiro, que cumprisse seu “dever patriótico” e colaborasse na “investigação do caso”. Pediu-lhe um capitão que apresentasse ao superior a lista com o nome dos convidados e o programa de visitas a ser feito no Brasil:
“Voltei-me então para a poltrona onde se encontrava minha pasta, a fim de apanhar os referidos documentos, quando fui surpreendido pelo coronel, que, avançando resolutamente em minha direção, berrou-me – não há outro termo –, num tom de voz que se podia ouvir a alguns metros daquela sala, que era bom que eu soubesse que, quando ele estava falando com alguém, não admitia que essa pessoa se voltasse de costas para ele!”

Se assim se tratava um cônsul brasileiro, imagine quem não dispusesse de um passaporte diplomático... São lembranças que ajudam a conhecer a história recente do Brasil, narradas não com o sentimento da vingança, mas com a tranquila consciência de quem deu o melhor de si ao nos representar no exterior. Consciência que não lhe nega a lúcida compreensão de quem somos, como indivíduos e como sociedade:
“(...) Reparem como nós brasileiros, enquanto povo, temos várias das características típicas de um jovem adolescente: somos quase sempre irrequietos, impulsivos, impacientes, insubordinados, resistentes a qualquer forma de imposição, embora receptivos a um bom processo de persuasão (...) Achamos que o mundo nasceu conosco, que não temos passado, e por isso vivemos avidamente o presente, e o vivemos apenas como uma fase transitória para um futuro que, temos certeza, será necessariamente brilhante, embora pouco ou nada façamos para que isso aconteça... Alternamos com grande facilidade estados de euforia e de depressão, ora estimulados por uma vitória no futebol, ora desanimados por uma piora na situação econômica do país.”

Como Lauro Moreira, são poucos, entre nós, os que unem a grandeza intelectual à competência administrativa, o poder das ideias à obstinação com que as transforma em realidade. Hoje, divide-se o animador cultural entre Ribeirão Preto e Lisboa, onde preside o conselho diretivo do Observatório da Língua Portuguesa. Homem para quem a aposentadoria é o oposto da inatividade, dedica-se, agora, a fazer um papel no filme Volta à Casa Paterna, de Alberto Araújo, e a interpretar Rubem Braga em O voo da Borboleta Amarela, do diretor Jorge Oliveira, que logo estarão nos cinemas. Ao mesmo tempo, escreve, produz, agita, no permanente trabalho de fazer da cultura não um privilégio de poucos, mas um direito de todos. Já sem os deveres funcionais e as injunções políticas da carreira diplomática, segue a ver na literatura, no teatro, no esporte, na música fatores de desenvolvimento humano, de justiça social e de elevação do espírito. É a lição de idealismo, de nobreza e de solidariedade fraterna que Lauro Moreira nos dá em seu machadiano Quincasblog, bom a partir do nome...

Por Edmilson Caminha - membro da Academia de Letras do Brasil e da Associação Nacional de Escritores.