Agosto, 2020 - Edição 258
Criaturas do mar
Há em mim uma veia lusitana que faz com que me sinta uma criatura
vinda do mar. Talvez porque tudo sai do mar e a ele retorna. Talvez porque
o mar esteja entre mim e Deus neste século. Talvez porque atravesso o mar
da vida em um navio frágil.
Sou fascinada pelas viagens de descoberta de Vasco da Gama,
Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães. Os primeiros exploradores que
enfrentaram os terrores do oceano ensanguentado, as tempestades, o fogo
dos raios e trovões, as fúrias do vento, as ondas agitadas. A ânsia de encontrar novas terras, riquezas, oportunidades; novos problemas e maneiras
de pensar. O navegador não sabia para onde ia, nem tinha esperança de
voltar. O importante era desafiar o desconhecido, com iniciativa e coragem.
Densos nevoeiros infecciosos escondiam recifes e ilhas. Shakespeare comparou as brumas a uma “suja e contagiosa escuridão no ar”.
Monstros marinhos eram para os exploradores uma realidade.
Estavam nos desenhos dos mapas; nos bestiários medievais, um tipo de
literatura comum entre os monges, que descrevia as bestas fantásticas do
mundo animal, que povoavam a imaginação dos marinheiros. Esses monstros de grandes bocas, dragões com dentes e caudas, rondavam ao largo e
se alimentavam dos mastros do navio, esmigalhavam a galera, os canhões,
os barris de vinho, os botes a remo. Formavam-se depois redemoinhos.
Baleias e tripulantes afogavam-se aos gritos.
A poetisa argentina, Alfonsina Storni (1892-1938), emigrou com a
família da Suíça para Santa Fé, onde modestamente trabalhou como costureira, operária, atriz e professora. Quando soube que era portadora de um
câncer de mama, suicidou-se, lançando-se ao mar de um penhasco. Tinha
46 anos. A tragédia foi registrada na canção Alfonsina Y El Mar, gravada na
voz tonitruante de Mercedes Sosa (1935-2009). Alfonsina, com sua solidão,
foi buscar poemas novos nas espumas de sal. Angústias e dores a calaram.
Ela se recostou numa rocha forrada de conchas. Cinco sereias a levaram
por caminhos de algas e de corais. Cavalos-marinhos fizeram uma ronda a
seu lado com outros habitantes da água, como enguias, lagostas, golfinhos,
esses delfins que conhecem uma linguagem cifrada de códigos ancestrais.
Alfonsina vestiu-se de mar...
Também eu mergulhei em águas abissais profundas do oceano do
meu inconsciente. Aprendi a sobreviver em condições difíceis, extremas,
com pouco oxigênio, muita pressão, nua e com frio. Meu corpo se tornou
elástico. Meu esqueleto ficou leve, quebrado e minha carne gelatinosa.
Coloquei uma haste de luz na ponta da minha cabeça como um espinho.
Meus olhos se tornaram enormes como lâmpadas. Na treva verde, vejo
esponjas, peixes de vidro, ogros com longos caninos, plânctons, caranguejos gigantes, pentes de águas-vivas, filamentos de seres clonados e chumbados em colônias luminescentes.
Requer esforço voltar à tona, à superfície do planeta. Sair dessa viagem, dessa vertigem. Começo devagar a seguir os bandos de pássaros-contramestres no céu. Observo boiarem cascas de palmeiras, galhos de árvore.
Saio aos poucos daquele pântano inavegável e cheio de monstros. Já não
estou à mercê dos elementos e dos perigos do mar, como o apóstolo Paulo,
que sofreu naufrágios durante dias e noites no abismo. Os perigos foram
afastados por um clarão de eletricidade que me salvou. Posso discernir entre
instinto e intelecto. Nado no nada. Contra a corrente. Sou criatura do mar.