Julho, 2020 - Edição 257
Sonetos em Crise de Jorge Elias
Neste período de pandemia ocasionada pela COVID-19, Jorge Elias Neto, médico
cardiologista, que pertence à Academia Espírito-santense de Letras, Cadeira nº 2 (cujo
patrono, Graciano dos Santos Neves, também foi médico) lança pelo correio Sonetos em
Crise, com arrecadação voltada a alimentar pessoas sacrificadas pelo coronavírus.
Sonetos em crise (2020), na interpretação em Nota do autor, objetiva “impor-se”,
como “necessidade da experimentação”, formas fixas para falar da crise do homem. Há
poemas, às vezes, perto do nonsense. Um exemplo seria o soneto “O século natimorto”
(p. 77), em que o eu lírico procura projetar o sentimento de torpor, de impossibilidade do
ser. “[...] Um não despertar, um alívio// do bardo, contrito e só,/ como se lhe chegasse ao
ouvido/ o tropel, uma morte feroz.”
Jorge Elias ilustra a obra, apresentando na introdução o poema “Versos íntimos”,
de Augusto dos Anjos, em cuja poética transgressiva, o eu lírico se desespera para salvar
a humanidade por meio de seu projeto fracassado e com temas da solidariedade universal, ligado à desumanização, dúvidas existenciais, emoções angustiosas, impregnadas de
melancolia, o desamparo, a solidão e a morte.
No soneto Versos íntimos, o eu lírico de dos Anjos se sente desamparado, desiludido com a humanidade e fecha o soneto: “Se alguém causa inda pena a tua chaga,/
Apedreja essa mão vil que te afaga./ Escarra nessa boca que te beija!” Esse sentimento
de desamparo e desilusão vai permear o livro Sonetos em Crise. O sexto soneto, “De profundis” (p. 21), é um exemplo nos versos conclusivos: “pois cada súplica, lamento, oferta,/
resta incógnita nas ramas da tarde,/ que não acoberta o erro, a empáfia/ dos salmos, e os
apelos dos covardes/ que surgem e se insurgem nesta terra,/ desfrutando a essência do
milagre.”
Também se percebe esse sentimento de insatisfação e impotência do homem ante
uma humanidade indolente, no primeiro soneto apresentado no livro: Soneto sem teto (p.
15). Comprova-se sua conclusão nos dois tercetos: “E nada sobra que se preze e guarde/
àquele ser que se debate firme/ contra uma vida que esmaga e late.// Resta o engate ao
cerne da maldade,/ sem esperança, se atirar ao crime,/ e ser centelha no porvir da tarde.”
Assim Augusto dos Anjos é a afirmação, o esteio que se apoia Jorge Elias para começar a
apresentar os 38 sonetos, de Sonetos em crise, produzidos de 06 de abril de 2018 a 12 de
outubro de 2019, nos quais um eu lírico busca a razão do existir: “Eis o embate, vaidade
inerte do fantasma,/ que busca a verdade na estética da arte,/ impondo regra ao cadafalso, um cataplasma.” (Poema “O que não cabe 3” – p. 75).
A metáfora na poética de Jorge Elias é um emprego constante. Em Sonetos em crise,
não só pelas metáforas, como pela sintaxe e signos, o processo da criação da obra torna-
-se dramatizado, obrigando o leitor a ler e a reler, a permanecer mais tempo meditando.
Nesse processo de um universo poético particular, freia-se o ritmo da leitura que volta
constantemente sobre seus passos. Dificultando encontrar a precisa informação imediatamente, as palavras tornam-se inacessíveis para um leitor menos atento.
À primeira vista, os poemas parecem não ter sentido lógico. Nesse universo
hermético, há um jogo de signos que ressalta o caráter sagrado-lúdico da totalidade do
poema. O soneto “A cama posta” (p. 23) traz o tema da amargura diante da transitoriedade
da vida. A noite, personificada, pensa, “por temer o fim”. A morte “transe absoluto”, “açoite
imposto”, “desfolhar de sonhos desmedidos”, “o remover dasvendas”, “uma pantera”, “essa
comédia”, “segredo ao pé do ouvido do ausente” é a angústia do eu lírico. Vamos entendendo, primeiro porque nos emocionamos pela beleza do som, mas não pela significação
lógica, ao término de uma primeira leitura. Há uma associação irracional.
Depois da descoberta podemos ler com profundidade o poema de escritura densa,
polivalente. A fonte da inspiração se encontra nas profundidades do eu (do homem
mesmo) em crise, em manifestação de seus sentimentos para com o mundo e a arte. Daí
compreendermos a abrangência do adjetivo “crise” que se encontra no título do livro
Soneto em crise e que podemos perceber na nota inicial, quando o autor se faz intérprete
da obra e explica o gênero do livro e sua matéria: “traduz a crise do homem do séc. XXI”.
No soneto “Arrimo da pedra branca” (p. 53), na ambiguidade dos signos, detecta-se
as inquietações do autor. Nas imagens, que poderíamos classificar com a terminologia
dada por Carlos Bousoño, de “visonárias” , parece desaparecer o sentido lógico, pois o
seu sentido se esconde nas dobras da emoção. Há um plano real e outro da imaginação.
Com o recurso linguístico da força dos signos, aparece um deslocamento qualificativo
na locução, “triste pedra”, na personificação de um ser bruto, que será a metáfora de
seu corpo, do próprio eu lírico: “Minha epifania é carne.” A descoberta com a imagem
da “fumaça branca” que tanto pode anunciar a alegre nomeação de um novo papa ou
mostrar a tragédia humana da dependência de uma “triste pedra” que aniquila o homem:
“Resta a loucura da fumaça branca/ de uma triste pedra que me alicerça,/ muro e casa.
Ah, febril esperança!” .
Por fim, afirmamos que Sonetos em Crise, saído agora, neste período tenso de 2020,
subverte carnavalescamente o ritual social e existencial, numa escritura densa e, polivalente,
segue as pistas abertas pela poesia moderna e extravasa a inquietação de um EU.