Julho, 2020 - Edição 257
Reflexões sobre a arte da escrita – Quando a literatura nos fala ao coração
Em tempos difíceis em que a sombra da morte parece se aproximar de muitos de nós, parece-me natural que busquemos algum conforto em textos que possam nos dizer algo diretamente ao coração. Sejamos devotos ou não, a literatura,
muitas vezes, nos provê de escritos que, com a abertura correta de nosso espírito,
pode muito nos dizer de nós mesmos e nos levar à reflexão de elementos centrais
de nossa existência, dos quais, em muitos casos, acabamos nos afastando na imensidão dos afazeres do dia a dia.
Mas os textos corretos nem sempre caem gratuitamente às nossas mãos,
devemos buscá-los com perseverança ou termos alguém que nos leve a eles.
Em minha longínqua juventude, eu tive a sorte de ter um grande professor de literatura
italiana, realmente profundo conhecedor e apaixonado pelo tema, com quem tive a
grande oportunidade de me iniciar nos elementos centrais dessa tradição literária.
Foi com ele (cuja graça me abstenho de citar porque não sei se ele gostaria de ter o
meu nome ligado ao seu e, além disso, confesso que não sei se fui um estudante à
altura da sapiência do mestre com o direito de proclamar que eu estaria ligado ao
seu círculo de alunos) que comecei a destrinchar a literatura medieval italiana e as
suas profundas mensagens para o espírito humano em qualquer que seja a época.
Em um destes últimos dias, em meio a tantas perdas que temos sofrido,
recordei-me de uma de muitas aulas deste querido professor, e o meu coração buscou abrigo na literatura italiana do século XIII, mais particularmente nos Fioretti
de São Francisco. O texto não foi escrito pelo santo, mas apresenta um conjunto de
histórias da tradição oral sobre a sua vida. Foram um bálsamo ao meu coração as
horas que passei com as histórias dos milagres, das ações, de sua relação próxima
com os animais (a ponto de conversar com um lobo na presença do povo) e de tantos outros aspectos da vida de São Francisco.
Ao findar do dia, busquei, também, alguns de seus escritos originais. Ao lado
do seu soberbo “Cântico das criaturas”, não pude deixar de me comover com outro
belíssimo texto seu, tão bem conhecido, que diz: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz; Onde houver ódio, que eu leve o amor; Onde houver discórdia,
que eu leve a união; Onde houver dúvidas, que eu leve a fé; Onde houver erros, que
eu leve a verdade; Onde houver ofensa, que eu leve o perdão; Onde houver desespero, que eu leve a esperança; Onde houver tristeza, que eu leve a alegria; Onde
houver trevas, que eu leve a luz. Ó Mestre, fazei com que eu procure mais consolar,
que ser consolado; Compreender, que ser compreendido; Amar, que ser amado;
Pois é dando que se recebe; É perdoando, que se é perdoado; E é morrendo que se
vive para a vida eterna”.
Após a sua leitura, pausada e meditativa, fui levado a me perguntar por
quais caminhos tenho pautado a minha própria existência. Será que tenho sido
um instrumento de paz? Será que eu tenho ajudado a unir as pessoas? Será que
tenho agido com justiça quando há necessidade? Será que eu tenho perdoado o
suficiente? Será que tenho ajudado a aplacar as dores de meus semelhantes? Será
que tenho pensado mais nas pessoas ao meu redor do que em mim mesmo? Será
que eu tenho ajudado a consolar os que precisam? Será que eu tenho procurado
compreender as outras pessoas, suas ações e seus motivos sem julgamentos? Será
que eu tenho aberto o meu coração para o amor, para aquele ágape do qual nos
fala Espinosa e que me faz próximo de meus irmãos, sejam eles seres humanos ou
demais criaturas?
Independentemente de termos a certeza de uma vida eterna ou de acreditarmos que a vida é algo que se resume a uma única existência terrena, ao abrirmos
o nosso coração à literatura de São Francisco, não podemos (ou, pelo menos, não
deveríamos) passar incólumes à sua mensagem de esperança e de caridade como
um apelo a mudarmos, se necessário, a condução de nossas existências, sobretudo
após vivenciarmos um período de tantas dificuldades. Uma das muitas lições que
aprendemos com a sua literatura é a imensa consideração que devemos ter para
com o planeta que nos abriga e para com todas as suas criaturas. São Francisco foi
um verdadeiro ecologista avant lalettre, que pensava na totalidade da existência e
não apenas no ser humano como seu ponto central.
Outro questionamento que não pude deixar de me fazer é como seria se
fôssemos governados por políticos educados e tocados pela literatura de São
Francisco. Políticos que, ao invés de inflamarem a violência, buscassem a união,
políticos que, ao invés de se acobertarem em mentiras para defenderem os seus
interesses mesquinhos, agissem com verdade, políticos que, ao invés de incentivarem a destruição do planeta, lutassem para a sua preservação, incluindo aí a sua
fauna e a sua flora, com a consciência de que o planeta é um bem para as gerações
futuras, políticos, enfim, que, ao invés de debochar das pessoas que morrem em um
momento de crise, trabalhassem corretamente para construirmos com esperança
dias melhores.
Passados 792 anos da morte de São Francisco, as mensagens contidas em
sua literatura e em sua vida se mostram muito atuais e nos fazem perceber, sobretudo, que ainda temos um longo caminho a percorrer, uma estrada que envolve a
educação com humanidades para que a, assim chamada, “humanidade” reaprenda
os sentidos e as responsabilidades de sermos humanos, se, realmente, quisermos
construir uma sociedade verdadeiramente justa para todos os seres desta nossa
irmã e mãe Terra.