Julho, 2020 - Edição 257

Pia

Sobravam-me alguns minutos de mais um dia apressado dentro de casa quando subitamente me acometeu o desejo de escovar os dentes. Premência de livrar a boca dos excessos rotineiros, cotidianamente guardados, em plena pandemia.

Dirigi-me ao banheiro – era muito próximo, mas tão longe, somado ao fato de faltar-me uma pia que me servisse no quarto de dormir. Eu enxaguava a boca dos fétidos resíduos aderidos, quando notei alguém torcer a maçaneta da porta. “Para ver se estava realmente fechada”, pensei. Como seria possível, se, há sessenta dias, atravessava solitária a quarentena? Sosseguei ao lembrar que seguramente havia passado o trinco, sanidade suficiente para resguardar (de mim mesma) meus sagrados instantes de privada limpeza.

Mas a criatura do lado de fora insistiu. Bateu então três vezes com os ossos dos dedos, arrancando da madeira da porta um barulho estridente, ofensivo. Permaneci quieta, imóvel. Boca aberta, queixo caído. Mas ainda assegurada pelo silêncio que emanava de meus gestos, sem querer. Meu silêncio me salvava da criatura invasiva e inesperada.

Foi quando a ouvi esmurrar a porta. Cada soco fazia reverberar em mim o ódio por todas as invasões bárbaras, a ira justificada por tantas injustiças históricas, o peso insuportável de cada mal-entendido experimentado nesse mundo cão de fora, agora dentro.

“Que audácia”, pensei revoltada. “Como ousa essa criatura teimar, após já ter topado com a porta fechada? Como pode exceder-se assim, tanto?”

Terminei meus afazeres, ora interrompidos e estragados, já apressada, inconformada por abdicar do pouco privado que supunha, em minha inabalável engenhosidade de erguer separatistas cancelas. Quando abri a porta, lá estava uma moça, lívida, desesperada. Parecia comigo. Me avistava com olhos arregalados perdidos, e, com uma voz arrancada das trevas, em tom meio sem graça, deixou escapar: “eu perguntei se havia alguém, mas ninguém respondeu...”

Jamais esquecerei daqueles olhos desamparados. Ela procurava alguém, quiçá fosse eu, e tudo que pude lhe dar foi a minha ausência, presença boquiaberta. Sem dar um pio.

Num reviramento impossível de ser retratado, de repente era a moça a me interrogar sobre a minha resposta: meus arrogantes remetentes, meus insuficientes sinais, infinitas mensagens improdutivas cujo destino nunca equivale ao destinatário. Retornos sem correspondência. “Tem gente”, vislumbrei, anos depois.

Naquele dia, dei-lhe passagem, deixei a porta escancarada para que ela entrasse enquanto eu saía. E, tão de perto, num “fora-dentro”, em meio ao esbarrão com que os calores de nossos corpos (até então estranhos) se encontraram, por um miserável instante, nos fizemos companhia.

Depois nos perdemos. Segui meu destino de acumular excessos sob horas que não passam e que me fazem passar mal pelo resto do dia, sem escovação possível. E, da moça em desespero que mal passou por mim, nunca mais tive notícias.

Por Sandra Niskier - Sandra Niskier Flanzer é psicanalista e escritora.