Junho, 2020 - Edição 256

Confidências a Clarice

“Todo caso de loucura é que alguma coisa voltou.” (Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G.H.)

Voltou, quando tudo aparentava o brilho da permanência. O silêncio da rotina, a mansidão dos dias, o tiquetaquear do velho relógio da sala, testemunha de eternas gerações.
De início, Clarice, não dei por sua chegada. Você nunca se apresenta às claras, gosta sempre das elipses, dos sugeridos, do que se faz melhor quando pouco dito. Chegou de mansinho, li seu escrito no canto da folha, um bilhete ao mundo. Como se abandonasse sua mensagem aos náufragos deste mundo. Li, reli e, quando dei por mim, um incômodo se instalou nas minhas certezas; como uma droga bendita, aquilo foi tomando minha mente, meu corpo, meus ditos. Com pouco, eu descrevia coisas de que nem suspeitava que sabia. O infinito a me amedrontar, como se a nascer de novo. Sem o grito do parto, apenas e tão só com o bafio do verbo novo.
Levanto-me e vou respirar lá fora. Fora de onde? De mim? As nuvens, que antes me serenavam, tomam a forma de pespontos de danação. Com um quê de mil interrogativas. Somos o que já fomos, ou somos o que somos, apesar do que ainda seremos? Fundadores do óbvio?

No sereno da tarde, volto para dentro. Dentro de onde? De mim? De ti? Um silêncio anterior ao mundo dito civilizado. O oco de tudo a me revelar que é preciso abrir mão das platitudes para sentir as altitudes. O homem e a mulher só serão plenos se dispostos a abandonarem as certezas dos outros para buscarem o dogma de si mesmos. O tutano do que é próprio de cada um, singular e particularmente difícil de ser descoberto. Não se encontra diamante à beira do rio. Há de se batear, há de se procurar, na luta é que nos fazemos gente. Quando dou por mim, a noite cai e o sono não encosta. Ao contrário, uma insônia funda me chocalha os pensamentos, feito ondear de ressaca, a quebrar as ondas dentro da enseada do meu cérebro, na tentativa de tornar cristalina (e limpa) a praia dos meus dias.

Sem ver o que me (a)cerca, sem compreender, Clarice, o que me desvela, eu volto a ti. Lá, num início qualquer, tua palavra me eleva e me inquieta:

– Não, não te assustes! Certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente.

Há uma loucura em mim, Clarice, e ela é a melhor parte de mim. Para você que agora me lê, leitor, meus sentimentos. Lá fora, indiferente a tudo isto, o amanhecer de Licânia me surge, com os restos da antiga civilização das ribeiras do Acaraú. Por entre o quebrar da barra, o sangue de minha província na nova manhã. Sei que sofrerei por me aproximar, novamente, de tantas descobertas (haveria uma redescoberta do mundo?), Clarice, mas gostei (confesso perante Deus e o mundo) de ser (a)tentado por ti.

Sim, o mundo de Licânia voltou, quando tudo aparentava o brilho da permanência. E, a partir de então, o silêncio da rotina fez-se grito de agonia; a mansidão dos dias, um brado de desespero, e o tiquetaquear do velho relógio da sala, testemunha de eternas gerações, um badalar sem freio. Sandices literárias? Quem há de saber, Clarice?! Toda literatura é um tributo à loucura de si mesmo.

Por Clauder Arcanjo*

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.