Junho, 2020 - Edição 256
Brasília, cidade de Clarice
Se Clarice Lispector fosse uma cidade, esta seria Brasília.
Quando a escritora visitou a nova Capital do Brasil pela primeira vez,
em 1962, foi uma cidade-bebê que ela viu. Viu que foi construída na linha
do horizonte e tão artificial quanto o mundo quando foi criado! E que a
criação não é uma compreensão, é um novo mistério. Quando retornou
em 1974, encontrou-a adolescente, querendo definir o que seriam seus
traços de cidade adulta. Clarice escreveu duas crônicas sobre essas visitas
nas quais mergulhamos, nadando a favor de sua corrente, fazendo nossas
as suas palavras. Ela viu tudo e tudo observou com olhos de connaisseur,
de quem é íntima das cidades do mundo e seus mistérios. Comparou-a às
ruínas de Roma e, sobretudo, ao Rio de Janeiro, onde vivia desde os dezessete anos. E Clarice viu muito. Viu, em 1962, que Brasília não tinha ratos;
em 1974, observou que eles já estavam por todos os lados. Sim, Clarice,
eles eram muitos ratos; foram aparecendo e invadindo a cidade, como n’A
Peste, de Camus
Clarice, mulher de curvas, viu que a cidade também era feita de
curvas, porém magra, elegante, sem esquinas com botecos para um cafezinho, como no Rio. E ela não podia com as ruas redondas. Até o céu é
redondo aqui. E as nuvens, agnus dei. Clarice achou a cidade um espanto,
pois Lúcio Costa e Oscar Niemeyer não queriam que ela fosse bonita ou
feia, mas que fosse o espanto; uma cidade espantada como ela mesma, e
isso a encantou, pois se movia e escrevia a partir do espanto. (Assim como
Gullar.) E achou-a também arriscada. E ela ama o risco. Achou que podia
aqui levitar. E condenou o vento que tudo varria. O vento aqui, Clarice,
era um deus brincalhão que fustigava os cabelos das mulheres e levantava
suas saias. E o sol tão alto e claro que atingia as pessoas com seus raios
verticais. E Clarice perdeu o sono aqui e pôde ver a escuridão da madrugada, negra, negra, como o mais negro mar em noite sem luar. Clarice achou
belíssimo o Santuário Dom Bosco com seus magníficos vitrais, mas, com olho de artista, achou de gosto burguês o fabuloso lustre que parece uma
imensa estrela brilhante caindo sobre a cabeça dos fiéis; (agora, não posso
vê-lo como antes). E, para ela, faltou um imenso ovo branco no meio da
cidade. Vou encomendá-lo a Brancusi, em sua homenagem, no céu dos
gênios. Clarice, Brasília é mistério, sim. Ela disse que Brasília é uma praia
sem mar. O mar aqui, Clarice, é o sertão que não acaba mais...
Diferentemente de Caetano, que não viu seu retrato no espelho de
“Sampa”, Clarice viu-se retratada nesta cidade-ruína, que nasceu antes
dos seus habitantes, espalhada a céu aberto. Ela mesma, de alma antiga,
imemorial, do tempo em que tudo foi criado e que não havia diferença
entre os seres vivos, e já existiam baratas. “Quero esquecer Brasília mas ela
não deixa. Que ferida seca. Ouro. Brasília é ouro. Faiscante. Tem coisa que
eu sei sobre Brasília mas não posso dizer, não deixam.” Clarice pergunta
quem é mais bonita das duas. As duas, responde. “Em Brasília, me dá vontade de ser bonita.” Você já é, Clarice. Uma deusa. E lembra que Brasília
não admite diminutivo. Sim, Brasília é um aumentativo do Brasil
Mas Clarice confessa que não sabe descrever Brasília porque Brasília
é limpa, é novinha, é feliz. É Júpiter. É eletrizada. Tem um público exigente. Fez palestra na cidade. E diz que ficou no Hotel Nacional, o mítico
hotel que hospedou outra rainha, a Elisabeth, da Inglaterra. Brasília cheia
de tesourinhas (e de censura em 1974). E Clarice amou o pôr do sol de
Brasília. E tem pena de Brasília porque não tem mar. Tem, sim, Clarice; o
céu é o nosso mar.
E, longe de Brasília, na madrugada insone, ouvindo Debussy no seu
apartamento no lindo Rio de Janeiro, escrevendo, encerra sua crônica/
balada sobre Brasília:
“Mas Brasília é esplendor.
Estou assustadíssima.”
E, neste ano de 2020, em que a cidade vira uma senhora de sessenta
anos, e a eterna menina Clarice completa os seus cem anos, só podemos dizer da falta que ela nos faz. E dizer, Clarice, você se esqueceu do
Presidente JK. Foi ele que, com a coragem de um Ulisses, fez a marcha
heroica, e fez o Brasil, como um girassol, virar a cabeça para o Oeste. Mas
está perdoada.
perdoada.
E Clarice disse: “Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília.”
E Brasília é Clarice: ninguém viu outra igual no mundo!