Junho, 2020 - Edição 256

120 anos de nascimento de Gilberto Freyre

O tumultuado mês de março surpreendeu o mundo com a proliferação do Coronavírus (COVID-19), que afugentou o círculo terrestre, afastando tudo de todos. Dia 15 daquele mês, aniversário do mestre Gilberto Freyre, não foram realizadas as homenagens dedicadas aos 120 de nascimento do antropólogo e sociólogo, cultor das relações internacionais e regionais, desde quando vem acontecendo o caos epidêmico deste vírus avassalador

Dentro da minha atual quarentena, isolo-me em reclusão consentida. Com meus 94 anos, além de escrever, faço exercícios para melhorar os movimentos. No ano de 2000, para homenagear o amigo Gilberto Freyre, li o seu livro Casa Grande & Senzala, edição Maia Schmidt, Rio de Janeiro, 1933. A leitura sugestionou-me a fazer uma série de dez pinturas, incorporando os textos e ortografia desta primeira edição. Apena fiz partilhar o meu mundo de imagens plásticas, vivas, coloridas subjacentes ao livro. Com as Cenas Freyreanas, prestei a minha homenagem ao mestre amigo, pela passagem do centenário do seu nascimento, ele que, em vida, me fez tantas louvações, espontaneamente. Escreveu, em jornais do Recife e no Diário Popular de Lisboa, a crônica A propósito de Marly Mota. Gilberto não viu a série Freyreanas. Esse trabalho de pintura de cenas, antes, já havia produzido e dedicado ao grande Eça de Queiroz, “Cenas Ecianas” e a Mauro Mota, “Cenas Motianas”; que circularam em exposição no Museu do gabinete Português de Leitura do Recife, em galerias de Lisboa, Guimarães e Póvoa de Várzim

O livro À Mesa Com Gilberto Freyre, editado pelo SENAC, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, na presidência de Fernando Freyre, resgata o gosto e o conhecimento culinário de pratos adaptados à mesa brasileira, ao paladar de Gilberto, um “bom garfo”. Organizado pelo sociólogo Raul Lody, traz relatos do próprio Lody, de Fernando Freyre, Sonia Freyre, da atuante jornalista Leda Rivas, e incluiu também a minha participação com O Solar de Santo Antonio de Apipucos, esfera ambiental de Gilberto Freyre. O mestre não dispensava os seus paletós de lã pied-de-poule, com certo charme contrastando com camisas e gravatas extravagantes, maneira muito sua. Era assim sorridente quando aparecia no patamar da escadaria da sua casa, acolhendo a mim e a Mauro Mota. Pelas salas, tão minhas conhecidas, entre os jacarandás, alguns assinados pelo mestre Beranger, havia uma especialíssima cadeira, peça adquirida por Gilberto, feita por encomenda para acomodar dona Rosa, mulher gorda, madrinha de Joaquim Nabuco, no Engenho Massangana, localizado no município do Cabo, Pernambuco. Gilberto, brincalhão, referindo-se à gorda cadeira, dizia: “Esta servirá à Magdalena.” Lula, o grande pintor, também sugeria para sua mulher, Lourdes. Nas paredes das inúmeras salas, muitos quadros de pintores pernambucanos: Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Vicente do Rego Monteiro, os meus incluídos, os de Gilberto, com sua captação lírica dos seus calungas. Deu-me um quadro, com a figura de uma escrava. Desde então, está em lugar de destaque na minha sala. Por muito tempo perdi o meu nome de batismo, pois Gilberto chamava-me colega, por ele também ser pintor.

almoço. Gilberto, anfitrião, servindo o seu célebre conhaque de pitangas, dizia ser feito com fórmula secreta, em ritual quase maçônico. À mesa, bons vinhos, boas conversas e o pirão de cozido, prato predileto de Gilberto, que admitia como Nabuco: “nada mais brasileiro que o pirão!” Depois do almoço, ficávamos no terraço em cadeiras preguiçosas e bancos que rodeavam o jardim. Do sítio, vinham os cheiros das resinas das plantas e o canto das cigarras, em final da tarde. Por exigências de Gilberto, não íamos embora tão cedo. Gostava de saber das novidades de sondar segredos. Entre nós, o riso corria largamente com caçoadas irreverentes de Mauro e Gilberto, mestres no assunto. Os dois vinham algum tempo escolhendo e preenchendo o “time dos chatos” do Recife, tenho-os guardado “a sete chaves”.

Resta-me louvar os 120 anos de nascimento do mestre Gilberto Freyre, que trouxe aos amigos uma privilegiada convivência, fazendo-me relembrar as aprazíveis rodas de conversas em tempos sem quarentena.

Por Marly Mota*

*Marly Mota é membro da Academia Pernambucana de Letras