Maio, 2020 - Edição 255
O poder da coroa – corona – na atualidade
A palavra “coroa”, do latim corona, radicado no grego korone, tem várias implicações. Em sua origem, designa um círculo, roda, uma grinalda de flores. Mas passou a indicar a coroa dos reis e também o coro de dança e canto no teatro, por sua disposição circular ou em semicírculo.
Quanto ao significado simbólico, por ser a coroa, colocada na parte superior da cabeça, remete à ideia de elevação e de iluminação, que se relaciona tanto com a clareza do saber quanto com o brilho proveniente das pedras preciosas que muitas delas ostenta(va)m. Daí ocorre que, em Arquitetura, um ornato no alto de um edifício, se chame coroa. Também por seu uso sempre em uma posição elevada, a coroa simboliza superioridade, glória, distinção, vitórias, valorizando, assim, quem a usa. Mas, paradoxalmente, a coroa pode simbolizar humildade, pois, quando o corpo se curva, a cabeça se abaixa.
A forma circular característica da coroa indica perfeição e uma ligação com o divino, simbolizando uma espécie de conexão entre o terreno e o celestial, o humano e o divino. Daí serem muitos reis considerados filhos de Deus. Também, numa justificativa de legitimidade de autoridade monárquica, seu direito de governar é derivado da vontade divina, e não de qualquer autoridade temporal, nem da vontade de seus súditos. Seu poder é supremo.
A coroa, ainda, representa a imortalidade e a preservação da memória de alguém que praticou um ato heroico, como recompensa de seu feito. Costume registrado na antiga Grécia e Roma, onde, durante um sacrifício, se coroava tanto o sacrificado quanto o sacrificador para aproximá-los dos deuses.
A coroa pode ser também um procedimento dentário, que, em sua estrutura, imitará o dente natural ou, ainda, uma gíria para designar pessoa de certa idade, isto é, um cinquentão ou cinquentona, “um Coroa ou uma Coroa”, ou para nomear de forma carinhosa os próprios pais. Em Astrologia, a coroa é um círculo em torno
Tenho por hábito arraigado ler antes de dormir – desde os sete anos de idade, quando, sob meu travesseirinho, dormia também o Coração, de Edmundo De Amicis – autor italiano, que muito me influenciou. Mais que isso, costumo dizer que ele forjou meu caráter com belíssimos exemplos de altruísmo, justiça, compaixão, estoicismo, bondade… Há uns três meses, chegada a noite, procurei, em minha estante, algo para ler. Por falta de livro novo, releio meus “velhos amigos” e é sempre uma nova leitura, outra visão, reflexões inusitadas que surgem. Totalmente ao acaso, pesquei na estante, de Albert Camus, A Peste. Complô do destino? Premonição? O comentário editado na orelha do livro, assinado por Jeferson Ribeiro de Andrade, diz: “O que confere atualidade ao livro e transforma suas situações em acontecimentos palpáveis é que a ‘peste’ que se abateu sobre a cidade de Oran, num ano indefinido da década de 1940, pode perfeitamente atacar nossa cidade” – “Quando os ratos começaram a surgir e a espalhar seu sangue pútrido antes de morrer, os habitantes da cidade a tudo assistiam incrédulos – [….] e recusavam-se a aceitar a verdade”. “As autoridades tentavam desvencilhar-se das evidências, a peste se infiltrava e iniciava sua inexorável matança.” “[…] a primeira reação (do homem) é de recusa, de fuga à realidade. Mas é preciso aceitar o lado ruim, e, então, ele começa a se adaptar e reagir, acionando seus instintos e suas forças de sobrevivência.” A evolução dos fatos na narrativa de Camus é incrivelmente similar ao que estamos vivendo hoje. Se a peste que dizimou a Europa, na Idade Média, foi erradicada, outras podem surgir, de outras origens e com outros nomes. A narrativa do livro de Camus se assemelha às manchetes atuais: “[...] Os jornais publicaram decretos que renovavam a proibição de sair e ameaçavam com
de um astro; na Botânica, é o conjunto de apêndices na corola ou base de algumas flores. Na Medicina, a palavra serve para designar o vírus de RNA, propenso a sofrer mutação genética, que lembra a forma de uma coroa e é causa comum de infecções respiratórias leves ou moderadas. Pode chegar, no entanto, a provocar pneumonias graves, com síndrome respiratória extremamente aguda. Nesse caso, como ocorre nas indicações de nomes científicos, o vírus receberá o seu nome latino “corona”.
Os coronavírus são conhecidos desde meados dos anos 1960. Mas aquele que gerou a pandemia em janeiro deste ano e se expande pelos diversos países do globo, o coronavírus 2019-20 (Covid-19), reina no mundo, afirmando o significado latino de corona (coroa): domínio, superioridade e vitórias, como um oximoro do poder. Universal, na simbologia circular de um oroboro, entra na família, durante as medidas de “quarentena” tomadas pelo governo, exercendo nela um processo de afastamento e aproximação: estamos juntos em casa, mas sem abraços e proximidades.
Se por um lado as pessoas procuram estar há dois metros de distância do outro, a presença dos familiares na residência aproximou-os e levou-os a preocuparem-se com as medidas preventivas recomendadas de higiene (lavar as mãos com sabão, cobrir a boca ao tossir, manter distância de outras pessoas) e a obedecerem normas de autoridades de restrições de viagem, de quarentenas, de toques de recolher, de controles de risco no local de trabalho e de fechamentos de instalações. Por outro lado, esta pandemia levou a uma grave ruptura socioeconômica global e a um número grande de totalidades de falecidos e infestados que nos lembram outras calamidades sociais e econômicas, que a História nos transmite. Entre elas a “peste antonina”, que atingiu o mundo romano de 165 a 180 provocando febre, erupção cutânea e diarreia, matando duas mil pessoas por dia. A “peste bubônica” assolou a Europa e se espalhou por outros continentes: no século VI, com mais de vinte e cinco milhões de mortos e, no XIV, com cinquenta milhões, na Europa e Ásia. No século XIX, a epidemia da cólera, por contaminação da água ou alimentos contaminados, levou a um milhão de mortos e, no final do XIX e princípio do XX, a tuberculose, doença pulmonar, levou a óbito um bilhão de mortos. A gripe espanhola, que recebeu este nome em virtude da grande visibilidade que lhe foi dada pela imprensa da Espanha, parece ter sua origem nos Estados Unidos, levou à morte mais de cinquenta milhões de pessoas de 1918 a 1920. E agora com o Covid -19 outra epidemia assombra o mundo que sonhamos resistente e belo.
Borges na conclusão de “Avatares da tartaruga”, em Discussão (1932), pode nos ajudar a entender o momento que o universo vive agora: “Nós sonhamos (a indivisa divindade que opera em nós) sonhamos o mundo. Nós o sonhamos resistente, misterioso, visível, onipresente no espaço e firme no tempo; mas permitimos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de ilogicidade para saber que é falso.” (Tradução nossa)
*Ester Abreu Vieira de Oliveira é presidente da Academia Espírito-santense de Letras e professora Emérita da Ufes.