Maio, 2020 - Edição 255

O grande desafio

Tenho por hábito arraigado ler antes de dormir – desde os sete anos de idade, quando, sob meu travesseirinho, dormia também o Coração, de Edmundo De Amicis – autor italiano, que muito me influenciou. Mais que isso, costumo dizer que ele forjou meu caráter com belíssimos exemplos de altruísmo, justiça, compaixão, estoicismo, bondade…

Há uns três meses, chegada a noite, procurei, em minha estante, algo para ler. Por falta de livro novo, releio meus “velhos amigos” e é sempre uma nova leitura, outra visão, reflexões inusitadas que surgem. Totalmente ao acaso, pesquei na estante, de Albert Camus, A Peste. Complô do destino? Premonição?

O comentário editado na orelha do livro, assinado por Jeferson Ribeiro de Andrade, diz: “O que confere atualidade ao livro e transforma suas situações em acontecimentos palpáveis é que a ‘peste’ que se abateu sobre a cidade de Oran, num ano indefinido da década de 1940, pode perfeitamente atacar nossa cidade”

– “Quando os ratos começaram a surgir e a espalhar seu sangue pútrido antes de morrer, os habitantes da cidade a tudo assistiam incrédulos – [….] e recusavam-se a aceitar a verdade”. “As autoridades tentavam desvencilhar-se das evidências, a peste se infiltrava e iniciava sua inexorável matança.” “[…] a primeira reação (do homem) é de recusa, de fuga à realidade. Mas é preciso aceitar o lado ruim, e, então, ele começa a se adaptar e reagir, acionando seus instintos e suas forças de sobrevivência.”

A evolução dos fatos na narrativa de Camus é incrivelmente similar ao que estamos vivendo hoje. Se a peste que dizimou a Europa, na Idade Média, foi erradicada, outras podem surgir, de outras origens e com outros nomes.

A narrativa do livro de Camus se assemelha às manchetes atuais: “[...] Os jornais publicaram decretos que renovavam a proibição de sair e ameaçavam com penas de prisão os infratores. Patrulhas percorriam a cidade.” “[…] viajantes eram impedidos de deixar a cidade.” “[…] quando as portas da cidade se fecharam...” – segue a crônica que, publicada em 1947, retrata exatamente o que estamos vivendo hoje. Só que o que estamos vivenciando não é ficção; não é o produto da mente prodigiosa de um escritor. É real – e está nos matando. Que podemos fazer ante esta inexorável armadilha do destino?

De imediato, empregar todos os recursos possíveis e imagináveis para salvar vidas, criar uma consciência coletiva da necessidade de nos unirmos, obedecer as novas regras, ditadas pelos homens de ciência e pelas experiências vividas nessa batalha, não subestimar o poder de fogo nessa guerra, cujo inimigo nº 1 é tão pequenino que não se vê a olho nu, mas tão poderoso e onipresente como um deus maléfico.

Porém, o vírus não é o único inimigo. Outros há que não podemos negligenciar: a ignorância, a teimosia insana, o desleixo, o descaso… além de um perigosíssimo inimigo: a opinião errônea e vaidosa de pessoas desavisadas que influenciam incautos. Donos de uma “verdade” frágil e doentia, pregam-na e a disseminam de forma irresponsável. São pessoas contraventoras por natureza, imaturas que, ao divulgá-la sentem-se “audazes”, “inovadoras”, desafiando o espectro da morte que passeia entre nós escaveirada, usando sua foice com a fúria de um tresloucado verdugo. Matam por tabela!

A ciência é poderosa e, como dizia o nosso competente e engajado ex-ministro Mandetta, “Unidos venceremos”. Mas a união só faz a força se abraçarmos a mesma causa, com o mesmo denodo, o mesmo cuidado, pisando as mesmas pegadas – pois estamos em campo minado.

Como a menina de sete anos que se emocionava com as histórias do Coração, citado no início, hoje, tocada profundamente pela compaixão por todos os que sofrem nesse mesmo momento, curvo-me, humilde e grata ante aqueles que – no front dessa guerra – dão o melhor de si, muitas vezes com o sacrifício da própria vida. Não esquecendo as pequenas e anônimas ações do grande coração da humanidade.

“[…] o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar.” (Albert Camus)

*Marilena Soneghet é membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, onde ocupa a cadeira número 13.

Por Marilena Soneghet*