Maio, 2020 - Edição 255
Corpo estranho – um microconto para a quarentena
É uma misteriosa intuição que lhe avisa para agir rápido: ele jamais passaria a quarentena longe dela. Bobo nunca foi, pelo contrário. Quem dispensaria a comida fresca e o cobertor quente? O fato é que ela não tem mais saúde para aguentar. É só olhar no espelho para comprovar. Por isso, sem hesitar, executa o plano, rezando para que funcione. Mentalmente, repete as orações aprendidas na infância. Durante um “pai nosso”, seu pressentimento se confirma e ela ouve os primeiros ruídos da aproximação dele. Os mesmos passos largos, a tão conhecida intimidade com os movimentos toscos, o assobio boçal. Paralisados, o filho maior e o filho menor medem até a própria respiração para não fazer barulho.
A maçaneta gira uma, duas, três vezes. A campainha soa. Uma, duas, três, infinitas vezes. A sequência previsível se realiza: os gritos, os socos. Ela treme, mas continua firme. Ele é bruto. Mesmo sem a chave, força a entrada, truculento. Contrariada, a porta range, mas cede, sem ter mais como resistir. Se pudesse, se manteria trancada, insensível ao ressurgimento daquele corpo estranho. Agora, as paredes da sala o encaram, intrigadas pela sua presença, depois de tanto tempo. Empalidecem. Em voz baixa, comentam entre si a surpresa de seu regresso, considerado improvável, quase impossível, sobretudo por causa das vacinas que a mulher aceitou, finalmente, tomar. O teto se surpreende com a aparição. De cima, habituou-se a contemplar apenas os três: a mulher, o filho maior e o filho menor. Por semanas, por meses. O lustre que oscila sobre os móveis e o sofá se pergunta se o corpo estranho conseguirá instalar-se novamente, como logrou fazer outras vezes, oportunista, ou se será expulso na velocidade necessária, como nunca se viu. Assim como a luminária, a mulher oscilou várias vezes, insegura, sem força suficiente para repelir a invasão. E se deu mal. Cenas desagradáveis permanecem acesas na memória das paredes, do teto, do lustre. Testemunhas silenciosas da história, eles não disfarçam a inquietude que os assalta, sobretudo por não poderem fazer praticamente nada.
Como quem veio para ficar, ele larga a bagagem no chão e, à vontade, olha em torno, procurando relembrar o espaço antes tão familiar. Chama por ela e pelos filhos, a voz animada, bem disposta, como se nada. A resposta é um silêncio espesso, difícil de atravessar. Por onde andarão, se a ordem é para que todo mundo fique em casa? Desconfiado, vai à cozinha: não há ninguém. Afobado, passa um olho desatento pelos quartos, já se conformando. O sangue lhe sobe à cabeça, como é comum. Grita mais alto. Dessa vez com raiva. Uma raiva que não tem para onde ir. A cidade está vazia. Seus lugares prediletos estão fechados, sem data para reabrir. Os companheiros se isolaram. As amigas sumiram. O mundo que conhece, desfeito, não tem mais como abrigá-lo.
Decidido a refrescar as ideias, atira a roupa longe e se mete debaixo do chuveiro, como se a ducha forte pudesse purificá-lo. Quer a água na temperatura máxima, na esperança de eliminar de suas carnes todo e qualquer vestígio de sujeira, de doença, de álcool, de jogo, de batom, de maquiagem. Tentará passar uma temporada limpo, mesmo sem saber se vai dar conta. Um fio de apreensão lhe percorre a espinha, já que não tem como definir o tamanho do desafio. Afinal, ainda não dá para precisar quantos dias passará recolhido, escondendo-se do ser maligno que atormenta o planeta.
A mulher sabe que tem trinta minutos pela frente. Assim, aproveita o momento do banho para deixar o esconderijo, erguido ardilosamente durante a ausência dele. Acompanhada dos filhos, sai de casa para longe, para bem longe. Vão sem máscara, sem qualquer equipamento de proteção. Mas vão aliviados, na esperança de sobreviver. O que mais querem é desaparecer nesse mundo sem deus. Um metro de distância dele é pouco, muito pouco.
*Rogério Faria Tavares é jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras.