Maio, 2020 - Edição 255
A lição de Antígona
Quando Sófocles, no século V a.C., escreveu Antígona (442 a.C.), que é considerada a mais bela peça do teatro grego, teve em mente apresentar a luta entre a mulher que defendia a família e o homem que defendia o Estado, como analisou Hegel. Era um cidadão respeitado, exemplo de dignidade, e chegou a ocupar o alto cargo de diretor do Departamento do Tesouro de Atenas. E é sobre a atualidade dessa peça de fundo moral e ético que iremos falar. Do direito de enterrar os mortos.
Em Antígona, o jovem Polinice, irmão da protagonista, é acusado de traição, morto e condenado a ter o corpo jogado num terreno baldio fora da cidade, a céu aberto, para que se tornasse alimento de cães e aves de rapina. Antígona, porém, rebela-se contra o decreto do tirano Creonte, seu tio, e, desafiando-o, vai, sozinha, à noite, escondida da guarda que vigiava o local, enterrar o irmão. Não demorou a ser descoberta, presa e condenada à morte. Mas, resoluta, e audaciosa, faz um discurso apaixonado em defesa do direito que temos de enterrar os nossos mortos, no qual diz que nenhum mortal tem “o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram!”. Há, segundo ela, leis escritas e leis não escritas.
Enterrar os mortos é uma lei não escrita. Refletindo sobre a atitude humana, corajosa de Antígona, pensamos nos mortos sem direito a velório, como estamos vendo hoje com a pandemia do coronavírus, neste ano de 2020. Mortos duplamente mortos: sozinhos, sem direito à cerimônia do adeus. Morrem entubados, isolados, e isolados também seguem para o enterro anônimo, sem as lágrimas dos seus. “Sem que chorem por mim, sem amigos, sem cânticos do himeneu, desgraçada, sou conduzida nesta fúnebre viagem!”, lamenta Antígona o seu triste destino. Assim, as pessoas que um dia foram cercadas do carinho de familiares e amigos passam imediatamente a “defuntos sem choro”, como dizem no interior.
E esse vírus, que tem também a coroa e a tirania de um rei, como Creonte, não permite que enterremos os nossos mortos com os ritos sagrados a que todos têm direito. Como disse Antígona, há leis escritas, que podem ser desobedecidas, e leis não escritas, que nunca são desobedecidas. Enterrar os mortos faz parte do inconsciente coletivo desde os tempos primevos. O que temos visto e enchido os nossos olhos de lágrimas são os mortos levados em caminhões enfileirados na Itália, mortos empilhados em necrotérios improvisados nas praças em Nova Iorque e, outros, abandonados nas ruas feito cães sem dono ou ainda jogados no lixo em cidades do Equador. Como n’A peste, de Camus.
Toca-nos também o depoimento comovente do escritor italiano Antonio Scurati que, de sua janela indiscreta, vê, perplexo, o vazio de Milão, sua rica cidade, agora reduzida a uma triste fila do pão, em meio “à pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das tragédias gregas”. Como Tebas quando Édipo lá entrou.
Assim, “Soturnos funerais deslizam tristemente/ Em minha alma sombria. A sucumbida Esperança/ Lamenta-se chorando; e a Angústia, cruelmente,/ Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança”, nos belos versos de Baudelaire. Mas há também o consolo nos versos de Vinícius de Moraes: “Para isso fomos feitos:/ Para lembrar e ser lembrados/ Para chorar e fazer chorar/ Para enterrar os nossos mortos/ Por isso temos braços longos para os adeuses/ Mãos para colher o que foi dado/ Dedos para cavar a terra.” E fica a lição de Antígona, prova de nossa humanidade.