Artigos - Rosa Negra*
Eram 5h40 quando João dos Anjos acordou, escovou os dentes, tomou café,
deu um beijo na esposa, foi até o quarto dos filhos e, em silêncio,
pediu que Deus os abençoasse. Depois, pegou seus pertences, dentre eles uma peixeira,
pois era açougueiro, colocou junto com sua marmita em seu embornal e
saiu para mais um dia de trabalho.
No caminho, passaria mais uma vez em frente ao bar, onde sempre era
chamado de macaco por um dos frequentadores, que, àquela hora da manhã,
já se encontrava bebendo. Mas, ao caminhar a passos largos pela rua de
terra batida sob o sereno da madrugada, João dos Anjos tomou uma decisão:
hoje ele colocaria um fim naquela humilhante situação.
Ao passar pelo bar e ouvir novamente aquela voz lhe chamando de macaco,
João dos Anjos parou em frente à porta, mexera em seu embornal e aguardou.
Era um homem negro, alto, forte, beirando os 55 anos de idade.
Quando os demais frequentadores viram a imponente figura daquele homem
parado à porta, houve um rápido silêncio e, em seguida, um burburinho
sobre o desenrolar dos acontecimentos.
Será que seria hoje o dia da vingança? Estaria João dos Anjos enfurecido
com aquele que lhe chamava todos os dias de macaco e agora era a hora
da desforra? Todos olhavam atônitos para João dos Anjos, inclusive o
dono do bar atrás do balcão, já imaginando a tragédia que estava por vir.
João dos Anjos chamaria seu detrator para um acerto de contas?
Estaria ele de porte de sua peixeira e desferiria um golpe certeiro
no peito do outro homem? Um sinal de maus pressentimentos pairava no ar...
Mas, para espanto de todos, João dos Anjos não adentrou o bar, não puxou
sua peixeira, não desferiu um soco, sequer agarrou o outro homem pela
gola da camisa... Simplesmente o chamou até a porta, o encarou e lhe
disse olhando fixo em seus olhos: “Pode continuar me chamando de macaco
até seu coração extirpar a última gota do fel do racismo e do preconceito
que lhe envenenam a alma.
O homem branco que, até então, atacava todos os dias aquele homem negro, de repente, parou de beber e, atônito, ficou paralisado com a reação de João dos Anjos. Os outros frequentadores, muitos deles testemunhas oculares do racismo que João dos Anjos era exposto todos os dias, perguntavam entre si qual seria o desfecho daquele embate. E João prosseguiu sua fala encarando firme aquele homem branco e racista: “Chamar-me de macaco, no fundo no fundo, não lhe faz mais feliz, não é mesmo? Até porque o ato de você me chamar de macaco não me transforma em um símio. Pelo contrário, mostra apenas sua pequenez humana ao revelar a besta irracional que se move descontroladamente dentro de você. Liberte-se desse peso. Retire as algemas que insistem em aprisionar sua mente e o seu coração. Afinal, sou tão humano por ser negro, como você é por ser branco. Pertencemos todos a uma só raça: a Raça Humana! Não importa a cor da rosa. O jardim só se torna multicolorido porque flores diferentes vivem juntas. Como humanos, respeitando humanos, sigamos juntos a grande marcha da existência. Com certeza, despidos de racismo e preconceitos, chegaremos muito mais longe.
Houve um breve silêncio e, em seguida, acompanhados pelo dono do bar, todos os presentes ficaram de pé e começaram a aplaudir aquele homem aparentemente iletrado, sem entenderem como alguém que poderia estar destilando todo o seu ódio e a sua raiva se dirigia ao seu difamador com palavras tão sábias. E João dos Anjos, num gesto ainda mais humano, aproximou-se do homem branco e lhe deu um forte abraço. Depois seguiu seu caminho rumo ao ofício que lhe garantia o sustento da família. E, desde então, ao passar em frente ao bar, nunca mais ouviu a palavra que tanto lhe doía na alma. Agora, era visto apenas como ser humano; o homem que merecia ser tratado com respeito e dignidade como todos os outros, independentemente da cor da pele que lhe vestia o corpo.
*A crônica Rosa Negra ficou entre as finalistas do Concurso literário de nível internacional
da Contemporânea Projetos Culturais – SP.
**Peilton Sena é membro da Academia Santista de Letras.