Abril, 2020 - Edição 254
Caça e Caçador
Passei pela rua Tonico de Carvalho, que leva o nome de meu tio.
Ele era caçador e colecionador de armas de fogo. Um dia, quando estava
limpando o cano de uma arma, no seu quarto-pavilhão de caça, o tambor
girou de repente e a bala penetrou entre suas costelas, formando uma
flor borbulhante de sangue. O caçador virou caça de si mesmo. Triste lembrança.
A primordial e milenar atividade da caça nos leva à Idade Média, onde ela estava
enraizada no cotidiano da época. Os cavaleiros da Europa, de guerreiros andantes,
transformaram-se em aristocratas rurais, sedentários em suas terras e castelos.
Esses homens vigorosos e rústicos saíam a cavalo pela floresta para caçar o javali,
o urso, o porco-montês, os cervos, as lebres e as perdizes.
Iam acompanhados de grande séquito. Levavam falcões e gaviões treinados para abater
animais de pequeno porte. Matilhas de cães farejadores. Era a forma de desenfadar a
fidalguia, o passatempo real, uma cerimônia cheia de gestos, objetos e lugares definidos.
O código feudal assemelhava-se a um treino militar. A floresta era o vasto campo dos
perigos e das emboscadas, onde se travava o conflito entre o bem e o mal,
onde a presença do sobrenatural era sentida na busca dos rastros.
Hoje, continuamos todos caçadores, conforme explicou o filósofo polonês Zygmunt Bauman
(1925-2017), em seu livro Tempos Líquidos. Somos compelidos a agir sob pena de sermos
expulsos da caçada, relegados às fileiras das caças. Num mundo povoado por caçadores,
há pouco lugar para devaneios e utopias. Resta-nos apenas um esforço desesperado para
permanecer na corrida. Fugir se tornou o nome do jogo mais famoso do momento,
onde a insegurança veio para ficar. Lutar contra a derrota e tentar estar entre os
caçadores toma nossa atenção vinte e quatro horas por dia. É preciso manter-se em
movimento, impulsionado pela fuga. A sorte dos eliminados é a rebelião e, às vezes,
o vício das drogas. Há várias formas de se evadir: mudar de emprego, de residência,
de país, de clima, assumir a promiscuidade, o álcool, as viagens, a psicanálise.
Escapar da necessidade de pensar no verdadeiro significado da vida, na nossa frágil
condição humana, precária e infeliz. Preferimos, então, a caça à captura da lebre,
porque a lebre não vai nos livrar de refletir sobre nossas limitações e imperfeições,
mas caçá-la vai. Capturar a lebre só tornaria a próxima caçada, a próxima posse ainda
mais sedutora, pois para um caçador não há trabalho realizado, nem missão concluída.
A labuta é interminável. A expectativa do fim da caça é apavorante numa sociedade de
caçadores. Seria a exclusão. Ouçamos as trombetas anunciando a próxima aventura.
O latido dos galgos. Doce memória de antigas caçadas.
No quarto-pavilhão de meu tio Tonico, havia quadros de caçadas. Nobres ingleses em carruagens.
A raposa com seu focinho comprido, a cauda longa e ruiva, os olhos ovais, saindo por detrás
de uma moita. Isso me remete ao fantástico conto “A Caçada”, de Lygia Fagundes Telles (1923).
O cenário é uma loja de antiguidades, com cheiro de arca de sacristia e livros roídos.
Dois personagens, uma velha, talvez dona da loja e um homem que vai ao estabelecimento
atraído por uma tapeçaria com a representação de uma caçada. No outro dia,
o homem volta à loja, observa melhor a tapeçaria e diz que tudo está mais nítido,
mais próximo. De repente, fica tenso, pálido, perplexo diante da imagem.
Sua mão treme na perturbação. Pergunta-se intimamente em que tempo teria
assistido a essa mesma cena e onde. Vê na tapeçaria esverdeada a marca de uma seta.
Ela vê apenas um buraco de traça. A loja vai ficando embaçada. Ele seria o caçador ou a caça?
Lembrou-se da dor da seta em seu peito. Morreu fulminado por um infarto na loja de antiguidades.
Esse é o eterno dilema da caçada: a caça para o caçador é um prêmio; o caçador para a caça é destruição.
Gato e rato. Forças que se confrontam e se confundem. Assim são as caçadas sentimentais, amorosas.
Imagino a cena: a amazona sobre o cavalo, um halo rubro de sol, a alameda de ciprestes.
Ela é uma lebre em fuga, uma raposa que vai perder a pele, uma onça que vai virar tapete,
uma gazela que vai tremer de febre. Do outro lado, o pavilhão de caça: o teto estampado de salamandras,
a lareira, os troféus, os sonhos, o sensual jogo de caça e caçador.
Tonico de Carvalho: nome de rua, nome do meu ingênuo tio. Sempre soube, desde menina, que a vida de
um caçador é uma tragédia.